17/09/2024

Conto ‘O caminho do adeus na terra da dor’ Por Lucélia Muniz | NOVA OLINDA-CE

Jornalista Lucélia Muniz

Ubuntu Notícias, 17 de setembro de 2024

@luceliamuniz_09     @ubuntunoticias

Era uma noite como muitas, o vento soprava fazendo uma nuvem de poeira e o ranger dos caibros da casa velha de taipa. No barro das paredes, rachaduras abriam-se como desenhos de uma pintura rupestre. O cheiro das cinzas do fogão à lenha deixava um odor de fumaça que se espalhava pela casa. Panelas vazias simbolizavam a seca que castigava com a falta de alimentos. Um punhado de farinha, um pote com água barrenta e o estalo da caatinga atingira a família de Maria e seus dois filhos, João e Ana.

João com apenas oito anos e Ana com seis anos não entendiam a dor da fome em pleno período de seca e com galhos brincavam correndo pela casa, enquanto a mãe Maria tentava receitas com as migalhas que sobrara. Ela vestia-se dos pés à cabeça com um vestido preto longo em sinal de luto pela morte precoce de seu marido, Antonio. A pele enrugada e os longos cabelos grisalhos, enalteciam o sofrimento causado pela tristeza e a missão de criar dois filhos sozinha. 

À noite, mesmo com toda aquela ventania, fazia com que Maria, diante da ausência do sol causticante, se dirigisse até um poço para pegar água e este era um ritual de todas as noites. Olhava para os lados, notava a ausência das crianças e se assustava.

Porém, quando dava os primeiros passos, ouvia seus gritos, correndo para tentar alcançá-la e ali estava sua companhia de todas as noites.   Maria encorajava-se e seguia até o poço para pegar água no ritmo do zumbido do vento.

De repente começava a ouvir passos, conversas de pessoas que passavam bem próximas ao poço. Sentia medo, mas lembrava que a seca tinha transformado a vida daqueles que fugiam para outras localidades. Não passava de mais uma família em retirada. Isso a acalmava e assim retornava para casa com a água para encher o pote.

Os retirantes que por ali passavam também se assustavam ao ver um vulto de uma mulher de cabelos grisalhos vestida de preto e das crianças que corriam brincando em meio ao zumbido do vento. Olhavam para o lado e seguiam caminho, sentido um leve arrepio na alma.

Quando Maria começa a chegar no terreiro de casa, sente novamente a ausência das crianças, não mais as escutava correr para acompanhar os seus passos. Sua memória vagueia e seu olhar se volta para um canto do caminho próximo a casa, quatro cruzes de pequenos galhos demarcam um local de descanso. Ali Antonio, Maria, João e Ana repousavam vitimados pela fome e pela seca.

Maria grita de desespero e ao entrar na velha casa de taipa percebe que até a sua vida fora ceifada e seu destino seguia preso àquele lugar. A noite retornava a casa e seguia com seus filhos até o poço para buscar água e quando retornava se deparava com uma dor vivida noite após noite.

Nem mesmo a morte tinha esgotado a sua coragem de lutar e se encorajar ao perceber os passos das crianças que a acompanhavam todas as noites.

Lucélia Muniz da França

Cadeira 35 da Academia de Letras do Brasil/Seccional Regional Araripe-CE.

02 de setembro de 2024.

In Memoriam de meus avós maternos – João Trajano de França e Ana Rosa de Lima e de meus pais - Antonio Cardoso Muniz e Maria Constância da França Muniz.

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