18/05/2023

Companheiro: aquele com quem divido o pão Por Tiago Novaes

Lucélia Muniz

Ubuntu Notícias, 18 de maio de 2023

@luceliamuniz_09     @ubuntunoticias

O texto que segue é um trecho de um livro:

“O prato na mesa, o azeite e o pão. A mesa servida, a panela fumegando e os copos manchados pelo vapor do caldo. O que distancia esta imagem cotidiana da experiência niilista? Por que não combina com os cenários do vazio e do absurdo? Com o que a associamos? Até onde nos conduz? O prato na mesa, com o que se cozinha – ou costumava cozinhar – em casa; nada sibarita ou sofisticado. Associamos a imagem sobretudo com o cuidado de cozinhar para os demais, a companhia e o cuidado caseiro. Também, naturalmente, com o prazer de comer. E com a memória dos “elementos”. O azeite para condimentar com a oliva e a terra firme onde se enraíza e o céu luminoso até onde se eleva; o fruto maduro, os trabalhos de colheita e a prensa das azeitonas para o azeite. O pão também nos descobre o céu e a terra, os vastos campos de trigo vizinhos ao azul, e que em seguida nos conduz de novo até o mais primordial: os demais. O pão é o que se compartilha e os “companheiros”, literalmente, são os que partilham do pão. […] A vida em comum depende de comer juntos, e deriva disso que todas as imagens de isolamento – não as da solidão – tenham algo de perturbador. O pão, o sal, a festa, o luto e a paz: de tudo isso que se partilha depende a sempre difícil e precária comunidade nossa.”

O livro se chama “A resistência íntima”, de Josep Maria Esquirol. O autor defende que a imagem das coisas simples em sua materialidade nos resgatam de certas forças entrópicas da vida: estas forças de desagregação do ser. É o que ele chama de “niilismo”, cuja etimologia remonta a “cortar o fio”, um desligamento, uma desconexão que produz a indiferença e a melancolia.

O pão, o azeite, uma sopa. São formas de energia, são derivados de outros seres e outros elementos. O pão, o azeite, a sopa falam de um processo. De como as coisas tomam tempo, suor, cuidado. E que este é o impulso civilizatório que valeria preservar.

O tempo do cultivo, o tempo de maturação do queijo, o tempo de fermentação do vinho. A paciência é algo que nos liga à terra. É uma prática de resistência íntima contra as forças de desagregação do mundo.

Inversamente, tudo o que consciente ou inconscientemente nos afasta dos outros. A ideia de indivíduo autossuficiente, a obsessão pela assepsia da solidão, a alergia aos outros, com seus ruídos, suas manias, e o ato asceta de desistir da humanidade, de como isso é o produto que financia e lucra com o ensimesmamento, com a nossa solidão.

Mas atenção. Esquirol, o autor que citei acima, nos lembra que “quem vai ao deserto não é um desertor”.

“Quem vai ao deserto é, sobretudo, um resistente. Não precisa de coragem para expandir-se e sim para recolher-se e assim, poder resistir à dureza das condições exteriores. O resistente não almeja a dominação, nem a colonização, nem o poder. Quer, antes de tudo, não perder-se, e de maneira muito especial, servir aos demais. Isso não pode ser confundido com o protesto fácil e tópico; a resistência costuma ser discreta.”

O cuidado e o autocuidado é a resposta que damos às experiências de abandono do passado. É a resistência às forças de desagregação da sociedade do lucro, do consumo, das aparências.

A terra é um cuidado.

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