Lucélia
Muniz
Ubuntu
Notícias, 23 de maio de 2023
@luceliamuniz_09 @ubuntunoticias
A poética da suficiência é uma ideia simples e complexa. A versão simples: o mundo hoje exige, mais que nunca, que passemos a desenvolver, tanto individual quanto socialmente, ideias e instrumentos de uma vida sem faltas nem excessos. Uma vida suficiente, sem faltas nem excessos, é uma vida consciente da dependência mútua de todas as espécies do planeta, da trama de sobrevivência que liga a vida microscópica do sistema digestivo humano à riqueza do solo e dos mares em todos os lugares do planeta.
Esta vida convoca as sabedorias ancestrais e a diversidade cultural, e reúne o conhecimento sagrado e científico. É uma vida atenta à inteligência de todas as espécies, e zelosa da preservação e do cuidado.
A poética da suficiência considera que qualquer excesso corresponde à falta de algum outro elemento que constitui a trama da vida. O equilíbrio das espécies em sua codependência se rompe sempre que uma espécie específica passa a sobrepujar as outras.
Justamente por isso, uma vida suficiente é uma vida dedicada a combater acúmulos e desperdícios, compulsões e desigualdades de renda. A fome e a ganância são duas faces do mesmo instinto, e um dos mais viscerais – o instinto de sobrevivência.
O instinto de sobrevivência são como abraços do afogado da espécie humana. É o que nos leva a pensar de maneira individual e desintegrada. É a raiz da pujança e o alimento do consumismo sem propósito. É o que entope as nossas artérias e esvazia os oceanos. É a raiz de nossa ansiedade urbana e a fonte de todas as injustiças sociais.
Caso abandonado aos próprios caprichos, o instinto de sobrevivência será a causa principal da extinção humana. O instinto de sobrevivência precisa, portanto, ser educado pela cultura da suficiência. Demanda uma prática de atenção ao próprio corpo, bem como de instalação de medidas sociais e educativas. Pede um aprendizado da fome e da fartura, um olhar para aquilo que nos basta e um combate político ativo.
A poética da suficiência não é nem um ascetismo, uma prática de abnegação, nem uma “mentalidade de abundância”. Ela conta com a prática, com as nossas escolhas, não com um “wishful thinking” pautado em pseudociências. Sabemos que as coisas podem faltar se não nos cuidarmos. Sabemos que mundos inteiros podem desaparecer se formos indiferentes ou negligentes. A poética da suficiência é uma prática da responsabilidade.
A suficiência é uma poética que atravessa o corpo e nossos desejos, mas também a estrutura social e discursiva. A poética da suficiência diz respeito ao modo como nos alimentamos, como consumimos, e também ao modo como a sociedade se organiza.
A poética da suficiência é a condição para a sobrevivência da vida humana nas próximas décadas e por isso ela deverá impregnar as conversas cotidianas e as decisões políticas dos próximos anos.
O quanto antes a poética da suficiência assumir a forma de
pensamento dominante e conclusivo, menores serão os danos e consequências da
cultura da sobrevivência. A poética suficiência não é uma utopia. É condição de
sobrevivência.
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