10/05/2021

Elementos da Cultura dos Povos de Terreiro| EDUCAÇÃO, HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA

Lucélia Muniz

Ubuntu Notícias, 10 de maio de 2021

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Via Curso Educação para as Relações Étnico-Raciais

Autor: Joécio Dias da Silva

ELEMENTOS DA CULTURA DOS POVOS DE TERREIRO

Os africanos que aqui chegaram foram trazidos de três regiões diferentes do continente africano: África Ocidental. África Centro-Ocidental e África Austral. Pela rota transatlântica, embarcavam do litoral de Angola, do litoral de Moçambique e do golfo do Benin. De acordo com Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes (2016), as contribuições desse contingente de pessoas, de quem descendem os brasileiros de hoje, podem ser classificadas em três ordens: (i) econômica, (ii) demográfica e (iii) cultural.

Nessa unidade, apresentaremos aspectos desse legado cultural que resistiram aos mais de três séculos de escravidão, ligados à religiosidade que, atualmente, ainda que com o racismo estrutural e a premissa de um país laico, constituem a identidade do povo brasileiro. A esse conjunto de mitos, ritos e práticas, chamamos de religiosidade de matriz africana e afro-brasileira. Essas religiões populares, como o Candomblé e Umbanda, fazem parte do patrimônio religioso brasileiro.

Alertamos que esse texto não tem – nem deve ter – o intuito proselitista de professar esses mitos e práticas, mas sim de identificá-los como elementos constituintes da cultura e da identidade de muitos estudantes e profissionais da educação, negros e não negros da sociedade brasileira, e que precisam ser abordados, com caráter positivo, nos currículos e práticas pedagógicas, a fim de garantir o direito à escola para todas e todos.

RELIGIOSIDADE NEGRA: RESISTÊNCIA POLÍTICA E CULTURAL

Todos os grupos sociais constroem formas de se relacionar com o mundo desconhecido, na busca de caminhos e explicações expliquem o sentido de ser e de estar no mundo. A religiosidade negra é rica e diversa. Os ancestrais africanos enriqueceram a cultura brasileira com diferentes expressões e formas de se relacionar com o mundo material e imaterial.

Em contextos de dominação e opressão, os grupos constroem processos de resistência religiosa, que são parte indissociável da cultura. A imposição do regime escravista acarretou um processo de ressignificação mítico-religiosa, de atribuição de outros e novos significados às coisas e ao mundo, por meio da ancestralidade com suas divindades e crenças.

Esse processo de aculturação é dinâmico e a força da matriz religiosa é um fator importante na construção das identidades culturais:

Compreender a tradição religiosa afro-brasileira, recontar a história do povo negro na África pré-colonial, pós-colonial e, em nosso caso específico, durante e após o regime escravista brasileiro, significa compreender um passado que para muitos de nós é desconhecido. Esse passado e o modo como foi construído interfere e interferirá em nossas crenças e nas formas de inserção e vivência do mundo atual, seja enquanto negros, brancos ou indígenas brasileiros. (Munanga e Gomes, 2016, p. 140)

No Brasil, algumas tradições religiosas de matriz africana tornaram-se mais destacadas do que outras. Não é nossa pretensão estudar todas elas profundamente. A intenção aqui é apontar a presença negra na história e na cultura brasileira, muito estudada por sociólogos, antropólogos e historiadores do tema e disseminado pela arte afro-brasileira, como a música e a dança. Nesse contexto, apresentamos duas delas: o candomblé e a umbanda.

O CANDOMBLÉ E A UMBANDA

De acordo com Reginaldo Prandi (1996) a organização das religiões negras no Brasil deu-se no curso do século XIX. Durante o período final da escravidão, os africanos foram fixados em ocupações urbanas e começaram a interagir de uma forma não vivenciada antes. Uma maior liberdade de movimento propiciou condições favoráveis para a sobrevivência de algumas práticas religiosas africanas com a formação de grupos organizados.

As religiões afro-brasileiras tradicionais formaram-se em diferentes áreas do Brasil, com variados ritos e nomes locais derivados de tradições africanas diversas. Assim, surgiram o candomblé na Bahia, o xangô em Pernambuco e Alagoas, tambor de Mina no Maranhão e Pará, batuque no Rio Grande do Sul e a macumba no Rio de Janeiro.

Até o final do século XIX essas religiões já estavam consolidadas, mas continuavam sendo religiões étnicas dos grupos negros descendentes dos es[1]cravos. No início do século XX, o contato do candomblé com o espiritismo kardecista europeu propiciou o surgimento de uma outra religião afro-brasileira que carrega tradições africanas, espíritas e católicas, a umbanda.

CANDOMBLÉ

Segundo o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva (1994), a forma de cultuar os deuses – nomes, cores, preferências por alimentos, louvações, cantos, dança e música – foi distinguida pelos negros de acordo com modelos de rito chamados de nação. Assim, os terreiros tentavam reproduzir padrões africanos de culto, uma identidade grupal e étnica como nos reinos da África, resultando em dois modelos de cultos no país:

1. RITO JEJE-NAGÔ: abrange nações nagôs (queto e ijexá) e as jejes (jeje-fon e jeje-marrin). Esse rito enfatiza o legado dos povos sudaneses, nos quais se pratica o culto aos voduns, orixás (divindades representadas essencialmente pela natureza) e caboclos (espíritos indígenas). São terreiros conhecidos como candomblé jeje e candomblé queto. Os cantos são principalmente em dialeto africano (iorubá). Desse panteão tem entidades muito conhecidas como Yemanjá, Xangô e Oxalá.

2. RITO ANGOLA: abrange as etnias congo e cambinda, enfatizando a herança dos povos bantos. São cultuados, além dos inquices (deuses bantos), os orixás, os voduns, os vunjes (espíritos infantis) e os caboclos. Esses terreiros são conhecidos como candomblé de angola e os cantos possuem muitos termos em português. Devido ao grande fluxo dos povos bantos no Brasil, essa nação espalhou-se por todo o país.

É uma religião que afirma o mundo, reorganiza seus valores e reveste de estima muitas das coisas que outras religiões, consideram más: o dinheiro, os prazeres, o sucesso, a dominação e o poder. Os seguidores se preocupam sobretudo com aspectos concretos da vida: doença, dor, desemprego, deslealdade, falta de dinheiro, comida e abrigo. Por não distinguir entre o bem e o mal do modo como o cristianismo, tende a atrair todos os indivíduos socialmente marcados e marginalizados por outras instituições religiosas e não religiosas.

UMBANDA

É uma religião nascida no Brasil e resulta do encontro de tradições africanas, indígenas e europeias. Sua doutrina é a ideia de comunicação com os espíritos dos mortos através do transe, com a finalidade de praticar a caridade entre os dois mundos na construção de uma paz eterna.

O antropólogo Vagner Gonçalves da Silva (1994) relata que a umbanda teve sua origem por volta das décadas de 1920 e 1930, quando o kardecismo de classe média passou a mesclar elementos das tradições religiosas afro-brasileiras e a professar e defender essa mistura, a fim de torná-la legítima e aceita, como uma nova religião. A partir de 1930, espalhou-se por todas as regiões do país, sem distinção de classe, raça e cor.

As origens afro-brasileiras da umbanda remontam ao culto às entidades africanas (Ogum, Iansã, Oxum, Iemanjá), aos caboclos (espíritos ameríndios, como Ubirajara, Jurema, Cabocla Iara), aos santos do catolicismo popular (São Jorge, Santa Bárbara, Padre Cícero e Freis Cosme e Damião) e às entidades acrescentadas pela influência do espiritismo (Alan Kardec, Bezerra de Menezes, Chico Xavier).

Sendo religiões de matriz africana, praticadas inicialmente somente pelos negros, sofreram – e ainda sofrem – todas as interferências do racismo existente no Brasil. Essa é a razão pela qual a escola e seus sujeitos tenham conhecimentos sobre outras práticas religiosas não cristãs. Compreendê-las para não julgá-las é imperativo para que não se adentre no campo do preconceito, da discriminação racial e do racismo.

O estudo dessas religiosidades negras proporciona entender como a presença do negro na formação social do Brasil foi decisiva para dotar a cultura brasileira de um vasto patrimônio religioso constituinte de inúmeras instituições e dimensões materiais e simbólicas, importante para a identidade do povo brasileiro. Daí surge a necessidade de sua inclusão nos currículos escolares como forma de garantir uma educação para as relações étnico-raciais e promover a equidade racial.

POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS DE MATRIZ AFRICANA E DE TERREIROS

Desde o período colonial, as práticas religiosas vinculadas aos negros são alvo de perseguição por parte da igreja católica, do estado brasileiro e, atualmente, de grupos evangélicos, em especial, neopentecostais. O movimento afro-religioso se configura a partir da criação das primeiras entidades representativas na década de 1930, mas somente no início dos anos 2000, organiza sua agenda na defesa da prática religiosa.

Povos de terreiro são grupos praticantes das religiões afro-brasileiras que possuem especificidades em relação à natureza e aos recursos naturais ligados ao território e territorialidade, dentro e fora do espaço sacro-ritualístico de suas comunidades e que possuem o entendimento de tradição oral demarcando a forma que transmitem seus saberes, seus modos de conhecimentos e suas histórias.

É uma categoria que surge na elaboração e na execução da Política de Promoção da Igualdade Racial, a partir da articulação dos movimentos afro religioso e negro. Essa articulação reverberou em outras áreas do poder público, como educação, cultura, saúde, assistência social e meio ambiente. No Brasil, tem como marco legal pioneiro, o Decreto nº 6.040/07:

Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007 Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidade Tradicionais

(…)

Art. 3º Para os fins deste Decreto e do seu Anexo compreende-se por:

I – Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;

Anexo

Princípios

Art.1º As ações e atividades voltadas para o alcance dos objetivos da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais deverão ocorrer de forma intersetorial, integrada, coordenada, sistemática e observar os seguintes princípios:

I – o reconhecimento, a valorização e o respeito à diversidade socioambiental e cultural dos povos e comunidades tradicionais, levando-se em conta, dentre outros aspectos, os recortes etnia, raça, gênero, idade, religiosidade, ancestralidade, orientação sexual e atividades laborais, entre outros, bem como a relação desses em cada comunidade ou povo, de modo a não desrespeitar, subsumir ou negligenciar as diferenças dos mesmos grupos, comunidades ou povos ou, ainda, instaurar ou reforçar qualquer relação de desigualdade;

(...)

XIII – a erradicação de todas as formas de discriminação, incluindo o combate à intolerância religiosa; e

XIV – a preservação dos direitos culturais, o exercício de práticas comunitárias, a memória cultural e a identidade racial e étnica.

A fim de garantir políticas públicas de promoção da igualdade racial, uma definição para esses povos é indicada no I Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável para Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (SEPPIR, 2013):

Povos e comunidades tradicionais de matriz africana são definidos como grupos que se organizam a partir dos valores civilizatórios e da cosmovisão trazidos para o país por africanos para cá transladados durante o sistema escravista, o que possibilitou um contínuo civilizatório africano no Brasil, constituindo territórios próprios caracterizados pela vivência comunitária, pelo acolhimento e pela prestação de serviços à comunidade. (SEPPIR, 2013)

A existência de diversos segmentos afro-religiosos é um aspecto histórico da formação da identidade do povo brasileiro, por meio da preservação da cultura africana e afro-brasileira. Os elementos da cultura afro-brasileira são partes constituintes da sociedade brasileira e contextualizam-se nos demais aspectos políticos e sociais, como o acesso e permanência na escola.

Conhecer e falar sobre candomblé, umbanda e outras manifestações e religiões de matriz africana na escola não é ensino religioso. Trata-se aqui de três aspectos importantes: (i) reconhecer que a religiosidade negra moldou a cultura que hoje forma a identidade do povo brasileiro; (ii) ter ciência de que essas religiões são espaços de convivência de outros segmentos étnico-raciais e (iii) entender a negação desses elementos é fator que impede a efetivação de uma educação para as relações étnico-raciais e promoção de igualdade racial.

RACISMO E INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NA ESCOLA

Pensar em políticas educacionais em contextos de ações antirracistas é reconhecer que a cultura escolar muitas vezes é racista. Isso pode parecer demasiado pesado e injusto. Contudo, é o que muitas vezes a escola faz com a população negra. Essa é uma realidade que precisa ser problematizada. Cada negro e negra, seja estudante, professor, gestor ou servente, sabe o que vive ou deixa de viver na escola em função do racismo que sofre.

Basta escutá-los para se ter uma ideia do que se passa!

O racismo existente na escola pode se revelar tanto de forma aberta e escandalosa quanto de forma disfarçada. Muitas vezes se recorre a subterfúgios para não se admitir que esse é um mal que também precisa ser combatido. Não é de hoje que as pesquisas revelam o quão racista e hostil o espaço escolar pode ser para as populações negras que compõem seus quadros.

Acreditar que o tema do racismo é uma questão que só diz respeito aos negros é, em si, uma das formas de corroborar condutas racistas que raramente são admitidas como formas de racismo. É como se tivessem vergonha de admitir seu racismo. As atitudes, contudo, revelam o racismo latente não só nas mentalidades individuais mas também disseminado na sociedade através das instituições, como afirma Sílvio Almeida (2019), ao tratar do racismo estrutural.

Patrício Carneiro Araújo (2019), ao pesquisar em escolas públicas de São Paulo constatou que o racismo nas escolas parte de estudantes, professores, gestores e até mesmo de agentes escolares. Esse racismo que extrapola a aversão aos marcadores fenotípicos das populações negras e atinge também as culturas produzidas por elas, como é o caso das religiões afro-brasileiras.

Se isso acontece em São Paulo, por que não aconteceria no Ceará? Há que se atentar para as diferentes formas assumidas pelo racismo nos variados contextos escolares brasileiros. Muito do que se acredita ser apenas bullying ou mesmo intolerância religiosa na verdade é racismo.

Entre as diferentes expressões do racismo existente nas escolas estão a naturalização do negro, que muitas vezes ocupa apenas as posições de serventes responsáveis pela limpeza ou manutenção das instalações, raramente aparecendo como professores ou professoras e, mais raramente ainda, em posições de mando como diretora ou coordenadora pedagógica.

A insistente pergunta “Quantas professoras negras você teve?”, que ecoa ainda hoje nos movimentos negros, é a prova de que, quanto mais se recua no tempo, mais se percebe essa lacuna. Por outro lado, a notada ausência de referências a pensadores, pensadoras, cientistas, artistas e personagens históricos negros no currículo é outra denúncia do quanto o racismo vai muito além dos conflitos entre alunos na hora do recreio.

Considerando que currículo é poder, percebe-se que esse é um dos espaços de poder que melhor revelam o quanto o racismo é estrutural, não só na cultura escolar mas em toda a sociedade brasileira. Se a ausência do negro no currículo e nos espaços de mando já expõe o racismo arraigado na escola, o que dizer da negação, rejeição, boicote e até mesmo perseguição às culturas religiosas de origem africana?

Considerando que currículo é poder, percebe-se que esse é um dos espaços de poder que melhor revelam o quanto o racismo é estrutural, não só na cultura escolar mas em toda a sociedade brasileira. Se a ausência do negro no currículo e nos espaços de mando já expõe o racismo arraigado na escola, o que dizer da negação, rejeição, boicote e até mesmo perseguição às culturas religiosas de origem africana?

ATÉ QUE PONTO ESSAS RELAÇÕES AINDA PERDURAM?

E SE PERDURAM, ATÉ QUE PONTO AJUDAM A REPRODUZIR RELAÇÕES DESIGUAIS E RACISTAS?

Como não reconhecer que nisso tudo há um racismo refinado e naturalizado que corrobora desigualdades e reforça estereótipos racistas?

É preciso admitir que essas relações são assimétricas para se chegar a ações efetivas de combate ao racismo, independente de suas formas de manifestação. A Lei 10.639/03 precisa ser efetivada na sua plenitude e que para isso acontecer há que se ensinar história e cultura africana e afro-brasileira. E nisso também está incluído falar sobre as diferentes expressões afro-religiosas, já que elas compõem parte significativa das culturas africanas e afro-diaspóricas.

HÁ AVANÇOS NESSE CAMPO, MAS HÁ MUITO O QUE MELHORAR!

(...)

o respeito mútuo e o diálogo solidário sempre serão possíveis quando houver comprometimento com uma educação libertadora e emancipatória.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Sílvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. Coleção Feminismos Plurais.

ARAÚJO, Patrício Carneiro. Entre ataques e atabaques: intolerância religiosa e racismo nas escolas. São Paulo: Arché Editora, 2017.

BRASIL, Decreto nº 6.040 de fevereiro de 2007. Política de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Brasília, 2007.

MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2016. PRANDI, Reginaldo. As religiões negras no Brasil: para uma sociologia dos cultos afro-brasileiros. Revista USP, São Paulo, n. 28, 1996.

SILVA, Vagner Gonçalves da. Candomblé e umbanda: caminhos da devoção brasileira. São Paulo: Ática, 1994

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