21/02/2020

Conheça a história da Senhora Doralice escrita por sua bisneta Paula Bernardelli

Lucélia Muniz
Ubuntu Notícias, 21 de fevereiro de 2020
Por Paula Bernardelli - Advogada eleitoralista, graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná
Minha bisavó, Doralice, chorou quando descobriu que estavam perguntando detalhes da vida dela porque eu queria escrever sobre ela. Ela achava que a família tinha vergonha da história dela.

Veja, ela nasceu em julho de 1929, numa cidadezinha no interior de Pernambuco. A terceira filha de 14 irmãos, de forma que, como era o costume, ajudou a criar todos os seus irmãos mais novos. Seu pai contratou um professor particular para alfabetização de todos os filhos e das crianças da vizinhança. Assim começou a ser alfabetizada aos 9 anos, aos 11 a família mudou para o interior do Alagoas e lá ingressou numa escola pública, aos 12 foi para o interior de São Paulo, alguns anos depois mudou para Juazeiro do Norte.

Estudou até o 4º ano, e com 17 anos casou com um viúvo que já tinha três filhos, com 2, 5 e 10 anos. Aos 18, já criando três filhos, teve sua primeira filha, que faleceu com 3 meses de vida. Não foi a única vez, teve mais uma filha que morreu com alguns meses e um filho que morreu com 7 dias. Mas teve também mais 3 filhas e 1 filho, além dos três enteados.

Criando 7 crianças descobriu um dia que seu marido tinha uma segunda família. Esse marido tinha ciúmes dela com o próprio filho (que era 7 anos mais novo) e a ameaçava constantemente dizendo que a mataria se ela o traísse.

O marido, militar, mandou os três filhos para escolas militares no Rio de Janeiro. Comprou uma casa em Fortaleza e alguns anos depois ele decidiu que iria vender a casa para comprar outra em Juazeiro.

Venderam. Ele pegou todo o dinheiro e foi embora. Deixou ela sem casa, sem dinheiro, com 4 filhos para criar e sozinha. Ela voltou para Juazeiro, alugou uma casa, esperou pela volta do marido por um tempo. Quando percebeu que ele realmente tinha ido, pegou todo o pouco que tinha e os 4 filhos e se mudou para o interior do Paraná, onde moravam seus pais. Prometeu que não se envolveria com nenhum outro homem novamente.

Lá fez um curso de corte e costura por correspondência. Costurava para ajudar os pais com as despesas. Trabalhava dias e noites, até que adoeceu. Recebeu um convite para dar aulas para turmas iniciais, mas ela sabia que ela mesma precisava de mais aulas.

Dava aula para crianças num turno, estudava em outro, costurava em outro. Chegava em casa de noite e virava a madrugada costurando. Concluiu o ginásio e o diretor do colégio disse que para dar aula para as crianças isso era suficiente. Ela não quis parar. Dizia que queria estar à altura de seu cargo. Seguiu estudando.

Era “mal falada” na cidade, por ser separada e por estudar junto com seus filhos.

Sua filha mais velha casou, seu enteado mais velho levou as outras duas irmãs para morar com ele no Rio de Janeiro, Doralice virou avó. Suas filhas voltaram do Rio. Uma delas foi morar num pensionato em Curitiba, a outra casou. Ficou ela na casa dos seus pais, com seu filho mais novo.

Mudou de cidade mais uma vez, para um emprego melhor, depois mais outra, para Curitiba. Na mudança pra Curitiba levou seu neto, e depois que começou a dar aulas levou mais um neto. Criava os dois, alugava quartos para ajudar a pagar as contas.

Descobriu que seu ex-marido, com a ajuda de seu enteado, forjou um atestado de óbito dela para que ele pudesse casar novamente. Depois de tanta coisa, teve que provar que estava viva.

Estava viva e vivia bem, ia à igreja, dava suas aulas, cuidava dos netos. Aos 50 anos decidiu fazer uma faculdade. Se formou em pedagogia aos 54. Era a mais velha de sua turma.

Foi trabalhar na Escola de Música e Belas Artes de Curitiba, recebia convites para balés, teatros, orquestras e shows, levava todos para os netos e os incentivava a assistir. Valorizava a cultura como forma de aprendizado, ensinou esse valor para todos que a cercavam.

Sua mãe faleceu, seu pai foi morar com ela. Cuidava de 4 netos, do pai e de uma irmã doente. Se aposentou, o pai faleceu, seu neto casou, seu ex-marido faleceu.

Teve idas e vindas de cidade, problemas cardíacos, em 2007 recebeu um diagnóstico que previa mais três meses de vida para ela. Depois disso teve uma queda, um AVC, uma paralisia.

Em 2017 tem 87 anos, 3 enteados, 4 filhos, 23 netos e 6 bisnetos. Cresci tendo ela como minha defensora. “Se você precisar namorar escondido pode usar minha casa”, ela dizia. “Homem nenhum manda na Paula”, ela falava sempre que alguém comentava que eu era brava.

Hoje, depois de muitos dias de internamento, minha bisavó voltou para a UTI, debilitada, fraca, sem forças para reagir, para falar, para contar essa sua história incrível para quem queira ouvir.

Eu não sabia bem ao certo o que faria com a história da minha bisavó quando decidi perguntar. Eu só sei que ela chorou. Chorou porque achava que sua história era uma vergonha. É absurdo pensar que deixamos ela acreditando nisso por tantos anos.

Eu ainda não sei bem o que fazer com toda sua história, mas ao menos isso fez ela saber que eu tenho – e nós temos – um orgulho danado da mulher que ela é, e de tudo que ela representa.
Na foto é ela, em sua formatura, aos 54 anos. [Atualizo esse post para registrar que na sexta-feira, dia 17/02, Doralice, minha Vó Lice, descansou. Deu tempo dela ouvir sobre o quanto sua história estava se espalhando e de como ela nos inspira]. 
 Escreveu sua bisneta, Paula Bernardelli

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