Lucélia Muniz
Ubuntu Notícias, 21 de agosto de 2019
Cláudio De Musacchio - Cientista do Comportamento Organizacional
Nossa materialidade corpórea não se resume mais a este corpo frágil com
duas pernas e dois braços. Nossa locomoção agora não é mais designada pelo
movimento de nossas pernas. Não nos deslocamos apenas fisicamente neste novo mundo.
Agora somos muitos e estamos em vários lugares ao mesmo tempo. Criamos cópias
virtuais de nós mesmos. Estamos experimentando potencialmente mais conexões por
minuto do que um homem poderia ter na década de 60 durante um ano.
Conhecemos mais pessoas hoje por conta das redes sociais. Estabelecemos
com elas trocas de sentimentos e emoções, às vezes muito íntimas, às vezes só
profissionais, sem ao menos ter visto estas pessoas. Estamos produzindo novos
sentidos e construindo próteses psíquicas capazes de nos ampliar neste mundo da
informação e da velocidade. Estamos nos coisificando e criando sujeitos fora de
nós. Umberto Eco erra também ao afirmar que a Internet deu ouvidos aos imbecis.
Senão que de outra maneira haveriam de aprender a falar, senão falando errado,
escrevendo errado. A internet apenas mostrou a face oculta da ignorância e
expõe o indivíduo à crítica e a necessidade de se aperfeiçoar, estudar,
melhorar. A Internet mostrou como os imbecis podem deixar de sê-lo.
Não é verdade que as sociedades estão se transformando em sociedades
líquidas. Pelo contrário, a liquidez mencionada pelo Baumann sugere maior
aderência e intercâmbio entre diferentes culturas, idiomas, modos de vida.
Sabemos mais sobre a Somália hoje do que sabíamos sobre outros bairros da nossa
cidade, algum tempo atrás. Temos mais informações sobre o que acontece no mundo
no formato instantâneo, vindas pelos diferentes afluentes tecnológicos e
sobrecarregando nossa caixa postal de mensagens. Estamos mais sujeitos a
refazer nossa trajetória em menos tempo, corrigindo nosso querer e o nosso
fazer profissional. Estamos em constante aparelhamento revolucionário de nós
mesmos. Produzimos mais perguntas do que respostas sobre o que nos rodeia.
Estamos nos reconstruindo o tempo todo e produzindo conexões nunca vistas
antes.
E este mar de produções de emoções, sentimentos e informações leva nossa
plasticidade cerebral e nossa genética a produzir soluções químico-biológicas
para dar conta dessa profusão de conexões. É errado dizer que estamos sucumbindo
ao volume de informações das relações sociais. Estamos sim, nos adaptando a
novas realidades e relacionamentos. Augusto Cury, outro pensador, que discursa
dizendo que é prejudicial a saúde, tamanha dose de informações diárias, não
compreendeu que o próprio organismo se incumbe de providenciar avanços
genéticos, cognitivos e intelectuais para receber o novo comportamento. O
cérebro é capaz de dar conta basta apenas se adaptar a tais volumes. As novas
gerações já estão se ajustando a essa nova modalidade.
Se antes criávamos artefatos e ferramentas para facilitar nosso acesso
ao mundo próprio, agora estamos nos alterando fisicamente, mentalmente,
cognitivamente, para produzir uma nova matriz de identidade, meio homem, meio
máquina. Estamos nos transformando em super-homens, dotados de mais força, mais
visão, mais intelecto. Construímos novos botões e cintos de utilidades para
interagir e modificar nosso próprio corpo, refazendo a cadeia DNA e prometendo
alterações significativas.
Dentro dessa dinâmica de vida moderna, contemporânea, instantânea e
espontânea, estabelecemos marcos regulatórios sobre nossa ansiedade e
depressão. A depressão é o mal do século e da nossa nova genética, que deverá
dar conta dessa compreensão de mundo. O que nos deprime é não termos condições
de acompanhar a revolução dos materiais, e de não mais acompanharmos a produção
desses materiais que nos tornam mais soberanos sobre o mundo próprio que
estamos construindo para nós.
Ansiamos demais e nos deprimimos demais com a demora, posto que o tempo
foi modificado e agora queremos as coisas imediatamente. Não queremos mais
esperar, posto que a espera nos angustia e nos coloca em limbos de conflitos
entre a materialidade, a mobilidade urbana, e a representação e participação do
que está acontecendo a nossa volta.
Agora, não existe mais o amanhã. Agora ele passa a ser uma construção
permanente de nós mesmos. O amanhã é construído paulatinamente pelas nossas
ações, pelas nossas aprendizagens, e pelas relações com os outros. Na verdade,
o amanhã está preparado para um outro ser que não sou EU agora. Eu mesmo estou
me modificando na velocidade com que vivo cada momento, a ponto de não
reconhecer meu EU que foi a dois ou três anos atrás. O amanhã não é mais um
lugar no futuro, e sim, um desenho feito por nós num papel em branco. O amanhã
virá, resultado do que fizermos neste papel em branco. O que vamos apresentar
ao futuro será um novo EU e não este EU de agora.
O problema maior não é chegar no amanhã com um papel em branco de nós
mesmos. É sim, um problema de não conseguir coexistir nesta sociedade que lá
estará. Não ter a menor possibilidade de pertencimento fará de nós seres
invisíveis, não existentes, mortos vivos numa sociedade em constante
transformação.
A extensão dos sentidos leva a extensão dos afetos. Por isso, estude
sempre. Não pare nunca de se reconstruir. E que sua extensão líquida possa lhe
enviar a novos afetos. Seja feliz, exista. Construa um novo você. Mas comece
hoje, agora mesmo.
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