Lucélia Muniz
Ubuntu Notícias, 20 de agosto de 2018
Por Lucélia Andrade
Professora de História da Universidade Regional do Cariri-URCA
Ontem, ao anoitecer, saindo da missa das 17:00h na catedral do Crato,
enquanto caminhava tranquilamente para casa, ouvi um estampido seco. Em
princípio achei que fosse algum tipo de bomba, e segui caminho. Mais uns passos
adiante outro estampido, olhei em direção ao som, mas não me foi possível ver
nada. Ao chegar do outro lado da rua, um terceiro estampido, seco. A ele
seguiu-se um silêncio, e o meu pensamento ordenou-se: certamente aquilo não
eram bombas. Quando ensaiei dar meia volta para ver o que ocorria, encontrei um
casal, a moça visivelmente nervosa me dizia para não voltar, pois “um homem
atirou numa mulher e correu”. Automaticamente pensei: mais um feminicídio para
as estatísticas do Cariri.
Fiquei ali, no meio da calçada, parada. Não podia seguir caminho. Não
como se nada tivesse acontecido, com a indiferença que nos é peculiar. Perto de
mim, na calçada foi chegando mais gente. Em sua maioria mulheres. Atônitas,
arregaladas, com medo (de novos disparos talvez) olhávamos com um olhar
cúmplice, solidário. Ao relato que era mais uma de nós tombada em praça
pública, no fundo todas sabíamos, conscientemente ou não, do que se tratava.
Paradas lá, não tínhamos muito o que dizer, não nos conhecíamos. Só
tínhamos aparentemente em comum o feminino que nos caracteriza numa sociedade
machista e misógina. Só relatávamos o barulho que todas havíamos ouvido.
Naquele momento, apesar do ocorrido reinava certo silêncio.
Eu ainda não conseguia seguir meu caminho. Saí da inércia e fui em
direção a um pequeno ajuntamento de pessoas que se formava. Lá, em meio a uma
multidão que falava baixo entre si: “não dá para ver quem é”; “ele correu”;
“alguém já chamou os bombeiros?”; vi o corpo estendido já aparentemente sem
vida no banco da praça. Estava claro que ela não teve tempo de reagir. Apenas
tombou de lado, vítima dos disparos que lhe ceifaram a vida. Mas, mais do que o
corpo, para o qual não olhei muito, me chamou atenção a pequena bota de criança
que estava junto dela no banco. As proximidades repletas de brinquedos infantis
por causa da festa da Igreja, insinuavam que o dono daquele pequeno sapato
devia estar por ali, brincando, enquanto ela do banco olhava.
Sem dúvida mais um feminicídio, pensei. Desses que não gostam que
falemos, desses que muitos dizem não existir. Não procurei saber mais nada.
Baixei a cabeça, desanimada, triste, cansada.
A igreja, cuja missa tinha acabado de terminar, e outra estava prestes a
começar, celebrava naquele domingo a assunção de Maria. Maria, mulher, mãe,
como aquela cujo corpo estendido no banco já sem vida era.
Caminhei para casa. A botinha no banco não saia do meu pensamento. Onde
estava seu dono? Ele viu sua mãe tombar morta? Por que ele não estava ali ao
redor? Teria se apercebido que aquela multidão se juntava em torno do corpo de
sua mãe?
Mais ou menos 1 hora mais tarde, as redes sociais, os portais que
noticiam a desgraça alheia veiculavam fotos do acontecido. Fotos do corpo
morto, fotos da vítima, tiradas certamente das redes sociais. Fotos do
assassino. Noticiavam também que este último havia levado consigo a criança,
seu filho, depois de tirar a vida da mãe.
Todos chocados. Horrorizados, com algo que já se tornou corriqueiro no
Brasil, esse país onde machismo, misoginia e feminicídio não existem, são
apenas frutos de mimimi de esquerdopatas corruptos e de feministas “mal
comidas”.
Algumas horas depois, desci para jantar. O sentimento de tristeza e
impotência que me arrebatavam haviam também tirado minhas palavras. Ao passar
pela praça, para minha surpresa, aproximadamente duas horas depois do crime, a
missa corria normalmente. Era uma missa
festiva. Celebrava a assunção de Maria, mas era também dedicada à juventude,
como o padre falara mais cedo: “aos jovens dos colégios católicos, e públicos
da cidade”.
Esses mesmos jovens, com os quais não podemos discutir gênero, cuja nota
que foi lida meses atrás na mesma catedral chamava de “ideologia de
gênero”. A Igreja que não quer que se
discuta gênero é a mesma que continua sua missa, mesmo com o corpo de uma
mulher assassinada pelo ex-companheiro estendido no banco da praça a poucos
metros do altar.
Nos arredores da praça, a sociedade cratense lotava os restaurantes,
comendo e bebendo alegremente. Todos, vez por outra dando garra de seus
celulares e alimentando as redes sociais com a revolta e a comoção pelo
ocorrido. Quando a tela do celular apagava, era mais uma risada, uma cerveja,
uma garfada. E o corpo lá.
Na praça, crianças continuavam lotando os “pula-pula”, passeando em
“motinhas” elétricas, correndo, comendo doces, pipocas. O transitar de pessoas parecia
perturbadoramente indiferente. A única coisa que anunciava que algo estava
diferente era o amontoado de pessoas silenciosas cercando um banco da praça,
onde jazia sem vida um corpo morto. Corpo de mulher, mãe. Corpo de Maria, que
não teve sua assunção, teve a usurpação de sua vida. Enquanto as outras vidas
seguiam indiferentes.
Então, senhores, senhoras, senhoritas, não falemos de gênero.
Calemo-nos. Feminicídio é bobagem. É mimimi. Sigamos armando nossos “cidadãos
de bem”, e entre o corpo sem vida de uma Maria e outra, festejemos.
Festejemos Nossa Senhora, bebamos nossas cervejas, comamos nossas
pizzas, deixemos que nossas crianças brinquem com naturalidade nas proximidades
de uma mãe assassinada e nos indignemos sobejamente nas redes sociais. Entre um
zap e outro, o que vale é aparentarmos humanidade enquanto somos cada vez mais
desumanos e insensíveis a dor do outro.
Afinal, feminicídio não existe, nem o corretor ortográfico do meu
computador o reconhece. Não falemos de gênero. Continuemos em uma sociedade
onde os homens são ensinados que as mulheres são suas posses, como coisas, e
como coisas podem fazer de nós o que bem entenderem, até matar-nos em praça
pública, porque isso já é coisa banal. Tradição, uns diriam. Nada mais potente
que a força da tradição. Nada mais desafiador que a tradição. Quebremos essa
tradição para que ela pare de nos matar.
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