Lucélia Muniz
Ubuntu
Notícias, 18 de março de 2018
Via Blog
Recortes Diversos
O Professor Nicolau Neto, blogueiro e ativista dos direitos civis e
humanos das populações negras, fala sobre movimento negro e suas conquistas, o
mito da democracia racial brasileira, a lei 10.639/03, o papel da educação no
combate ao preconceito no país e acerca do seu Blog em entrevista cedida ao Blog Recortes Diversos.
Entrevista
cedida ao estudante Sávio Marinho e publicada em seu Blog Recortes Diversos.
Recortes
Diversos (RD) - O que é
Movimento Negro e o que ele busca?
Nicolau
Neto (NN) – A própria etimologia das palavras “movimento” e “negro” nos dá uma
noção do que ele significa, do que ele representa para a comunidade negra.
Movimento Negro enquanto forma de expressão de luta e de resistência de um povo
existe desde que se começou o processo de escravidão. No Brasil, essa prática
foi visível desde o século XVI e se estendeu até fins do século XIX. Nesse
sentido, podemos falar deste movimento como aquilombamento de vários povos e de
etnias distintas historicamente marginalizados da sociedade brasileira buscando
formas de sobreviverem sem as correntes que aprisionavam seus corpos e as
péssimas condições a quem eram submetidos nas plantações de cana de açúcar, nos
engenhos, nas fazendas, nos cafezais, etc. O Brasil é o país que tem a maior
população de negros fora da África. Os negros foram trazidos do continente
africano para cá, escravizados e, não se contentando com isso, as elites
político-econômicas da época, através de diversas práticas, cuja escravização
inclui-se aqui como a mais clara, fizeram com que eles passassem por um
processo de ‘aculturação’, sendo obrigados a deixarem de praticar suas
linguagens, religiões e costumes adotando práticas europeias. Sendo assim, movimento
enquanto ato de mover-se e pretender mover alguém – no caso negras e negros
africanos – em busca de liberdade, vem junto com o processo de escravização. Mas
o termo Movimento Negro enquanto entidade nasce oficialmente em 1978. Sendo
mais detalhista, em 18 de junho de 1978 quando vários representantes de grupos
se reuniram em prol de uma causa, a luta contra a discriminação racial. Na
época, quatro garotos do time infantil de voleibol do Clube de Regatas Tietê
foram discriminados e Robinson Silveira da Luz, trabalhador, pai de família,
foi acusado de roubar frutas numa feira, sendo depois torturado no 44º Distrito
Policial de Guaianases, vindo a falecer em consequência das torturas. No dia 7
de julho do mesmo ano, ocorreu a criação e o lançamento oficial do Movimento
Negro Unificado agregando representantes de várias entidades das causas negras,
como Centro de Cultura e Arte Negra – CECAN, Grupo Afro-Latino América,
Associação Cultural Brasil Jovem, Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas
– IBEA, além de atletas e artistas negros. Cerca de duas mil pessoas
participaram do ato nas escadarias do Teatro Municipal da Cidade de São Paulo,
em plena ditatura civil-militar, para combater fortemente a discriminação
racial.
O termo
“movimento dos negros do Brasil” é correto?
Depende de quem fala. O lugar da fala e quem fala é muito importante em
qualquer circunstância. Há frases e expressões que ao invés de ajudar a
desconstruir mitos como o da “democracia racial” e preconceitos, no caso o
racial, acabam por reforça-los.
O que é
racismo?
Há várias maneiras de se responder essa pergunta. No Brasil, quem
pratica racismo está sujeito à pena de reclusão. Isso está posto no inciso
quarenta e dois, do artigo quinto, da Constituição Federal de 1988. Dentro
dessa lógica, significa dizer que o racismo gera injustiças, desconforto,
segregação e privilégios. Por isso, há a necessidade de se combatê-lo
veementemente todos os dias. Por isso a importância de movimentos – e o
movimento negro – não deve ser o único a lutar por esta causa. O racismo é um
desvio moral e ético e quem o pratica se vê em posição superior ao outro e a
outra, a enxergando como incapaz de ocupar certos cargos. O racismo no Brasil é
institucional também. Quantos negros e negras já exerceram o cargo de
presidente/a? Quantos/as parlamentares negros/as há no Brasil? E em Altaneira,
cidade que residimos, quanto/as diretores/as de escolas há que são ou se
consideram negros/as? Quantos/as vereadores/as já tivemos negros/as? Nessa
legislatura, quantos/as se declaram negros/as? Pensar assim evita, por exemplo,
que se cometa erro histórico, como do tão falado “racismo reverso”. Ele
inexiste. Quantas leis foram criadas no Brasil para proteger ou reparar danos
causados a pessoas brancas? Quantas destas já foram paradas nas ruas e
confundidas com bandidos/as? Quantas pessoas brancas foram as delegacias fazer
denúncias por terem sidos alvo de discriminação ou por terem sido impedidas de
erem acesso a estabelecimentos comerciais? Essas perguntas são importantes,
porque são elas que atestam o quanto o Brasil deve a nós, negros/as. No Brasil,
o costume é presenciar negro sofrendo racismo, não o contrário.
É preciso
ser negro para participar do movimento?
Não. Lutar par extirpar a discriminação, por melhores e maiores
oportunidade em todos os espaços de poder para o povo negro é um dever de
todos. Praticar isso cotidianamente é um exercício de cidadania.
Qual a
principal conquista que o movimento já teve?
Poucas foram às conquistas, mas as que conquistamos são provenientes de
muita luta e reivindicação dos movimentos negros e demais pessoas, como as leis
de cotas em concursos públicos e universidades - mas que precisa ser ampliada
para outros municípios e universidades, inclusive para a URCA. O Estatuto da
Igualdade Racial e as Leis 10.639/03 e 11.645/08 que obriga o estudo da cultura
africana e afro-brasileira e da cultura indígena, nas escolas, respectivamente,
além da instituição do dia nacional da consciência negra e do dia 20 do mesmo
mês, mas no âmbito local, que instituiu ponto facultativo nos setores públicos
de Altaneira. São poucas, porém, significativas. Precisam de reajustes. Algumas
porque estão incompletas e outras porque ainda não surtiu o efeito esperado. As leis que tornam obrigatório o ensino da
cultura africana, afro-brasileira e indígena nas instituições de ensino ainda
não vingou mesmo depois de 13 e 08 anos, respectivamente. O ensino brasileiro
ainda é pautado e cunhado pelo viés do povo branco, do europeu. E muitas
escolas ainda não obedecem a lei, seja por não cumprir, seja por cumprir de
forma parcial. Lembro de texto que escrevi para meu blog em novembro de 2015
onde afirmei que cotas raciais ainda é um tabu. Pouco se discute e as
pouquíssimas universidades que incluíram esse sistema de seleção nos
vestibulares são taxadas de favorecer a desigualdade e citam inclusive a CF/88
para isso, pois segundo ela todos somos iguais. Quanto a instituição do Dia
Nacional da Consciência Negra necessita-se também de uma discussão mais
profunda, de forma que se permita a ampliação do foco para além de novembro,
com debates, palestras e rodas de conversas o ano inteiro. No nível, municipal,
o primeiro ano em que a lei entrou em vigor, poucas instituições deram ponto
facultativo e as que funcionaram não promoveram reflexões acerca do assunto. O
caminho é difícil, mas vamos semeando.
O que seria
o mito da democracia racial?
Vamos ter que voltar para a questão do racismo como uma ideologia, como
gosta de dizer o antropólogo Kabengele Munanga. Segundo ele, a ideologia só
pode ser reproduzida se as próprias vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam
essa ideologia. Além das próprias vítimas, outros cidadãos também, que
discriminam e acham que são superiores aos outros, que têm direito de ocupar os
melhores lugares na sociedade. Se não reunir essas duas condições, o racismo
não pode ser reproduzido como ideologia, mas toda educação que nós recebemos é
para poder reproduzi-la. Há negros e negras que em virtude do processo de escravização
que gerou o racismo e as desigualdades, acabam por assumirem o discurso de seus
algozes e se alienam, achando que são mesmo inferiores e a outros que nega a si
mesmo para poderem ser aceitos no “mundo” idealizado e construído pelos
brancos. Um exemplo que salta aos olhos é o vereador eleito em São Paulo,
Fernado Holiday. Como ele, há muitos em cidades pequenas do interior do Ceará.
Isso acaba gerando o mito da democracia racial. Afinal, o brasileiro foi
educado para não aceitar que é racista. Mas basta aplicar o teste do pescoço
que logo se perceberá que a democracia racial no Brasil está longe de ser
atingida.
O que seria
“cotas raciais” e qual sua seria sua opinião, contra ou a favor?
Esse tema é gerador de muita discórdia entre setores da sociedade
brasileira. Há aqueles que se posicionam contrário e os que são favoráveis a
sua aplicação. Os que são contrários se valem da própria constituição ao
afirmarem que todos somos iguais e que as cotas, ao serem aplicadas atestam a
inferioridade de quem delas usufruem. Então, para eles/as não se deve tratar as
pessoas de forma diferenciadas. Outro argumento muito utilizado é a mestiçagem.
Somos um país constituídos de várias misturas, europeu, indígena e africano.
Logo, identificar quem é negro e negra no país se torna uma tarefa muito
difícil. O que se percebe, é que todos esses argumentos são facilmente frágeis
e não se sustentam. O Racismo no Brasil existe. Ele é cotidiano. Se todos somos
iguais perante a lei, porque negros e negras são os que mais sofrem? Por que
somos minorias nos espaços de poderes mesmo sendo maioria da sociedade? Então,
a discriminação por si só é chave para se identificar quem é negro/a no Brasil.
As cotas não são apenas um sistema de reservas de vagas em instituições
públicas ou privadas para determinados grupos classificados por raça ou etnia,
na grande maioria das vezes negros e indígenas. Na verdade, muitas pessoas
erram ao atribuir as cotas como sendo feita apenas para negros e negras. No
Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, o critério (com raríssimas exceções) é
a escola pública e não simplesmente a cor da pele. Nos EUA para ter direito as
cotas basta ser negro/a. Aqui a grande maioria das universidades e, a URCA (uma
das últimas universidades públicas) usam o critério étnico-racial combinado com
as condições socioeconômica. As cotas precisam ser entendidas como uma política
de ação afirmativa que visa corrigir uma desvantagem histórica. Se não for
vista por este viés as pessoas vão sempre perceber que elas são desnecessárias.
Em novembro de 2016 fui à Câmara de Altaneira e lá demonstrei dados do IBGE
confirmando que ainda há, mesmo com as cotas, um abismo muito grande,
principalmente em educação, entre negros e brancos. Este mês publiquei um texto
no Blog Negro Nicolau em que se constatou que só 10% das mulheres negras do
Brasil têm ensino superior. As informações são das pesquisas do IBGE - Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD e PNAD Contínua). Então, isso comprova
a necessidade dessa política afirmativa. Quem é contrário as cotas pensam como
se não existisse racismo no pais. Logo, enquanto houve discriminação por cor de
pele haverá a necessidade de cotas.
Para as
cotas raciais, quem é negro no Brasil?
De certa forma já respondi nas questões anteriores. Mas basta uma
autodeclaração. Claro que pode haver algumas falhas, como alguém querendo
burlar a lei. Mas isso pode ser facilmente resolvido.
Qual sua
característica negra que você mais gosta e lhe marca?
A resistência. Nós negros somos resistentes a esse sistema que nos
oprime, que tenta nos invisibilizar.
Para você,
qual a melhor forma de lidar com a discriminação racial
Isso vai depender da situação. Há aquelas que necessitam um enfrentamento
e um combate mais incisivo e outras que podem resolvidas de forma tranquila.
Mas todas elas precisam serem discutidas no sentido de construir relações
baseadas no respeito as diferenças, de valorização e reconhecimento de cada
humano. Você não precisa esperar que alguma situação que coloque em xeque a
dignidade das pessoas ocorra. É preciso fundamental que cada um de nós, nos
mais variados espaços de poder, tenhamos atitudes e provoque debates no sentido
de promover a igualdade respeitando as diferenças. Tem uma frase do professor
Boaventura de Souza Santos que gosto muito e que aponta um caminho para o que
ora se está discutindo. “Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença
nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade
nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as
diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as
desigualdades”. Então, é nesse sentido que podemos e devemos nos situar.
O que seria
a Unegro e como ela vê as conquistas do movimento junto ao governo atual?
A Unegro é a sigla que representa a União nos Negros pela Igualdade. Ela
está presente e 24 estados do Brasil, com sua sede na capital de São Paulo e no
próximo dia 14 de julho fará três décadas de atuação. Mesmo com sua sede na
capital paulista, a Unegro foi fundada em Salvador, na Bahia, em pleno processo
de redemocratização do Brasil e busca combater o racismo e toda forma de
discriminação e opressão social. No que pese ao como a entidade percebe as
conquistas junto ao governo atual, não seria bem a pessoa mais competente para
falar sobre. Mas como ativista das causas negras me vejo no dever de responder.
Não vejo nenhuma conquista do movimento negro neste governo. Ao contrário, nós
enquanto negros e enquanto movimento só tivemos retrocessos desde que esse
governo usurpou o poder com anuência dos setores mais conservadores e
retrógrados do pais, como a mídia e também daqueles que deveriam ser os
guardiões da constituição, representado pelo STF. Poderia citar aqui a extinção
da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), uma das
primeiras medidas do Temer.
Em sua opinião a Lei 10.639/03, que obriga o ensino
da história e cultura africana está sendo bem aplicada?
Esse ano a lei completou 15 anos. Já é possível perceber mudanças
significativas na aplicabilidade dela nas escolas. Já há uma extensa variedade
de textos acerca do assunto para se trabalhar com alunos e alunas e o mais
importante, sob o viés de negros e negras. Agora, o interessante é buscar
refletir sobre o como as instituições de ensino estão buscando se adequar à
lei, enveredando sobre o caminho dos avanços e dos desafios quanto a isso.
Então, não basta apenas criar leis obrigando o ensino da história africana, mas
tão importante quanto é gerar condições para que o processo ensino aprendizagem
ocorra com qualidade. Quando nos propomos a este tipo de questionamento,
verificamos que uma conquista do Movimento Negro, hoje a Lei 10.639 ainda não é
efetivamente cumprida em função de um conjunto de discriminações e
intolerâncias enraizadas na nossa sociedade e de um ensino nas escolas pautado
no modelo europeu. O não cumprimento dessa lei acaba reforçando uma série de
estereótipo atribuídos aos africanos, o que faz com que não tenhamos
referências negras na política, nas ciências, nas artes, na educação, na
cultura e em tantas outras áreas do conhecimento registradas nos livros
didáticos utilizados nas escolas de ensino fundamental e médio. Felizmente
algumas boas ações estão ocorrendo. Quando lecionei (2014 – 2016) na EEEP
Wellington Belém de Figueiredo, em Nova Olinda, consegui, junto a todos os
professores, a gestão e a demais membros/as da comunidade escolar, trabalhar
durante todo o ano letivo essas questões e a escola foi referência no Brasil,
com destaque no site Portal do Professor, vinculado ao Ministério da Educação
(MEC).
O que lhe
motivou a criação do seu Blog Negro Nicolau?
Quando lançamos o Blog em 27 de abril de 2011, o nome não era esse.
Começamos com “Altaneira Infoco”, depois mudamos para “Informações em Foco”.
Com este permanecemos por quase 5 anos.
Mudamos o endereço na rede mundial de computadores, mas a qualidade nas
informações e a preocupação para que esta seja utilizada como um instrumento de
poder e transformação social, o blog Informações em Foco agora denominado de
“Negro Nicolau” superou todas as expectativas e se tornou a menos de um mês em
um dos portais mais acessados do estado do Ceará e do Brasil. A ideia de mudar
o nome se deu em face de poder, através deste veículo de comunicação contribuir
a partir das minhas ações de sentimento de pertencimento, para que outras
pessoas se sentam representadas/os e empoderadas/os por negras e negros e
possam ainda se sentirem como tal, lutando para superar e eliminar um dos
maiores canceres do Brasil – o preconceito e o racismo. O fato é que o nosso
blog sem se apegar ao modismo dos veículos de comunicação hospedados na
internet e sem aderir ao elitismo barato e ao sensacionalismo, está desses seis
anos de atuação constante na rede mundial de computadores sempre A SERVIÇO DA
CIDADANIA e, para tanto, sempre buscamos oportunizar os menos favorecidos, os
que por algum motivo não tem voz através da comunicação. Esta (Comunicação) que
consideramos uma das principais armas contra a homofobia, misoginia, racismo,
conservadorismo, elitismo, enfim... contra as mais diversas formas que
corroborem para perpetuar as desigualdades sociais. E é exatamente por pensar
assim que além das nossas lutas diárias em vários espaços de poder, seja na
escola ou na rádio, resolvemos há seis anos colocar esse portal como mais uma
das ferramentas nessa luta de classe onde estamos do lado dos oprimidos na
busca permanente por fazer com que cada vez mais pessoas se sintam parte e se
sintam principalmente empoderadas/os.
Um livro ou
filme que você indica para melhor entendimento do movimento? Porque?
João Rufino dos Santos, historiador, professor e escritor brasileiro e
um dos nomes de referência sobre o estudo da cultura africana no país, diz que
“movimento negro é, antes de mais nada, aquilo que seus protagonistas dizem que
é movimento negro”. Então, tomando como base esse pensamento, sugiro como
leituras para conhecer um pouco mais profundo o movimento, a obra de Verena
Alberti e Amilcar Araújo Pereira intitulada “Histórias do movimento negro no
Brasil”; “Orfeu e o Poder: o movimento negro no Rio de Janeiro e São Paulo
(1945 – 1988)”, de Michael Hanchard, “O Movimento Negro Educador. Saberes
Construídos nas Lutas por Emancipação”, de Nilma Lino Gomes e “Saber do Negro”,
do próprio João Rufino dos Santos.
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