Lucélia Muniz
Ubuntu Notícias, 31 de março de 2018
“Porque todo dia é dia de luta e a gente não pode fazer deste dia
de luta, um luto”
“O
homem trans, é uma pessoa que nasceu no sexo feminino, mas tem sentimento de
pertencimento total ou parcial pelo gênero masculino, a ponto de sentir
necessidade de ser reconhecido socialmente como homem, porém, sua identidade de
gênero, não implica na sua orientação sexual, ou na
relação com o seu corpo, sendo estas, questões de caráter íntimo e individual,
e que não comprometem a sua masculinidade.”
É no artigo 16 das Diretrizes Curriculares
Nacionais do Ensino Médio (Res. 2 de 30 de Janeiro de 2012), que disserta sobre
a valorização e a promoção dos direitos humanos mediante temas relativos a gênero,
identidade de gênero e orientação sexual dentro do projeto político-pedagógico
das escolas, como práticas de enfrentamento a todas as formas de preconceito,
discriminação e violência, e a estratégia 3.13 do Plano Estadual de Educação,
de implementar e aperfeiçoar políticas de currículo, formação continuada de
professores e de aquisição de material pedagógico que garantam a inserção de
conhecimentos sobre segmentos populacionais que sofrem preconceitos e opressões
em razão do seu sexo ou da sua orientação sexual.
Dentro deste contexto vamos a duas histórias
que se cruzam em determinado momento: são os primeiros homens trans do Cariri
com retificação no Registro Civil. Dois novolindenses que se dispuseram a
conversar e dividir um pouco de sua história com os seguidores do Ubuntu
Notícias.
Júlio
Vieira da Silva Menezes, novolindense, 28 anos de idade, Assistente
Social trabalha no Núcleo de Diversidade e Gênero pela Prefeitura Municipal do
município de Juazeiro do Norte-CE. É casado, formou-se em Serviço Social e
atualmente reside em Crato-CE. Para ele, o início da puberdade foi decisivo
para se perceber como homem trans.
“Quando
eu externalizei isso foi um momento de alívio. Alívio e medo. Medo de expressar
o que a gente é numa sociedade tão padronizada, a gente tem um certo medo, mas quando nos conhecemos, podemos alçar voos,” disse Júlio.
Sobre o apoio da família, ele disse ter sido
fundamental conseguir o apoio de sua família (pai e mãe), porque de acordo com
o mesmo não é fácil a família também ter que passar por esta transição na
sociedade.
Sobre sua aceitação em sociedade ele afirmou
que: “eu nunca me senti aceito por mais
que eu goste da cidade que eu cresci e onde vivi a maior parte da minha vida
até agora... eu sempre me senti sufocado por conta da pressão social, por conta
da pressão familiar... era como se eu devesse alguma coisa a sociedade”. Porém,
deixa claro que Nova Olinda é o lugar onde quer passar a sua velhice e também o
local onde por vezes atua como militante.
Conseguiu a retificação do seu Registro Civil em 2016 via pedido judicial com contratação de
advogado e testemunhas mais provas anexadas ao processo. Daí foi possível obter
sua documentação – registro de nascimento, RG e CPF e demais documentos.
Júlio já passou por intervenção cirúrgica, faz
hormonioterapia há 06 anos com acompanhamento de um profissional da psicologia
e um endocrinologista.
Kayron
dos Santos Souza, novolindense, 19 anos idade, estudante
do Curso Técnico em Agronegócio da EEEP Wellington Belém de Figueiredo. Quando
foi se inscrever no processo seletivo da referida instituição de ensino, Kayron
disse que tinha receio de não ser aceito por ser homem trans e só deixou para
falar após a efetivação da matricula. Hoje diz que as pessoas trans não
precisam ter este medo e criar este tipo de barreira, diz ser muito importante
se assumir sem medo.
Para ele é fundamental ser reconhecido e
tratado pelo seu nome no ambiente escolar e fora dele. Até mesmo alunos menores de idade que se identificam como transgêneros podem
reivindicar o nome social na frequência escolar, pois já é um direito adquirido.
Kayron está namorando e diz que se descobriu
homem trans aos 16 anos de idade. “Eu não
me reconhecia enquanto mulher e não sabia que existia um termo para o que eu
sentia e pra quem eu era”, disse.
Tinha medo da aceitação da família, filho de
pais separados, mora com a mãe de quem a aceitação e o apoio é fundamental. “Cheguei pra ela e expliquei que não era a
filha que ela queria, que não era uma mulher”, afirmou Kayron.
O mesmo não fez nenhuma intervenção cirúrgica nem
começou o tratamento hormonal. Sobre sua aceitação em sociedade ele enfatizou
que: “muitas pessoas me respeitam numa
boa e é preciso que entendam nossos direitos”.
Hoje Kayron deu o primeiro passo rumo a uma de
suas conquistas: saiu do Cartório de Registro Civil de Nova Olinda com o seu
registro de nascimento devidamente retificado constando do seu nome - Kayron dos Santos Souza.
Ele
conseguiu a retificação do registro civil através do Projeto de Lei nº 5.002, de 2013 que dispõe sobre o direito à
identidade de gênero e altera o art. 58 da Lei nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973. No Artigo
4º deste projeto de lei fica explicitado que toda pessoa que
solicitar a retificação registral de sexo e a mudança do prenome e da imagem, em virtude da presente lei, deverá observar
os seguintes requisitos proposto
em 2013 e aprovado em 2018: ser maior de dezoito (18) anos; apresentar ao cartório que
corresponda uma solicitação escrita, na qual deverá manifestar que, de acordo com a presente lei, requer a
retificação registral da certidão de nascimento
e a emissão de uma nova carteira de identidade, conservando o número original; e expressar o/s novo/s prenome/s escolhido/s para que sejam
inscritos.
Kayron exibi com orgulho sua nova certidão de
nascimento expedida aqui no Cartório de Registro Civil de Nova Olinda e me diz
que já passou vários constrangimentos anteriormente quando tinha que apresentar
a identidade em algum lugar.
Mas, como disse Júlio, “tudo ao seu tempo”. Para ele quando a gente tem ânsia de olhar no
espelho e ver realmente o que deseja, tem que lutar! “Porque todo dia é dia de luta e a gente não pode fazer deste dia de
luta, um luto”, afirma.
E ainda enfatiza: “é luta porque nós somos minoria de direitos ainda... e sempre mostrar
sem medo algum o que realmente somos e se amar”.
Travestis, transexuais, transgêneros e
intersexuais não têm como se esconder em armários a partir de certa idade. Por
isso, na maioria dos casos, mulheres e homens trans são expulsos de casa, da
escola, da família, do bairro, até da cidade. A visibilidade é obrigatória para
aquele cuja identidade sexual está inscrita no corpo como um estigma que não se
pode ocultar sob qualquer disfarce. E o preconceito e a violência que sofrem é
muito maior. Porém, de todas as invisibilidades a que eles e elas parecem
condenados, a invisibilidade legal parece ser o ponto de partida. [Projeto de Lei nº 5.002, de 2013]
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