“É essencial para o
prosseguimento da luta feminista que as mulheres negras reconheçam a vantagem
especial que nossa perspectiva de marginalidade nos dá e fazer uso dessa
perspectiva para criticar a dominação racista, classista e a hegemonia sexista,
bem como refutar e criar uma contra hegemonia. Eu estou sugerindo que temos um
papel central a desempenhar na realização da teoria feminista e uma
contribuição a oferecer que é única e valiosa.”
UMA PERSPECTIVA BRASILEIRA
[...]
No Brasil, o feminismo negro
começa a ganhar força nos anos 1980. Segundo Núbia Moreira, “a relação das
mulheres negras com o movimento feminista se estabelece a partir do III
Encontro Feminista Latino-americano ocorrido em Bertioga em 1985, de onde
emerge a organização atual de mulheres negras com expressão coletiva com o
intuito de adquirir visibilidade política no campo feminista.
A partir daí, surgem os
primeiros Coletivos de Mulheres Negras, época em que aconteceram alguns
Encontros Estaduais e Nacionais de mulheres negras.” Surgem
organizações importantes como o Geledés, Fala Preta, Criola, além de coletivos
e produção intelectual.
Nesse sentido, Lélia Gonzáles
surge como um grande nome a ser debatido e estudado. Além de colocar a mulher
negra no centro do debate, Lélia vê a hierarquização de saberes como produto da
classificação racial da população, uma vez que o modelo valorizado e universal
é branco. Segundo a autora, o racismo se constituiu “como a ‘ciência’ da
superioridade eurocristã (branca e patriarcal), na medida em que se estruturava
o modelo ariano de explicação.”
[...]
A invisibilidade da mulher
negra dentro da pauta feminista faz com que essa mulher não tenha seus
problemas sequer nomeados. E não se pensa saídas emancipatórias para problemas
que sequer foram ditos. A ausência também é ideologia. Muitas feministas negras
pautam a questão da quebra do silêncio como primordial para a sobrevivência das
mulheres negras.
Angela Davis, Audre Lorde,
Alice Walker, em suas obras, abordam a importância do falar. “O silêncio não
vai te proteger”, diz Lorde. “Não pode ser seu amigo quem exige seu silêncio”,
diz Walker. “A unidade negra foi construída em cima do silêncio da mulher
negra”, diz Davis. As autoras estão falando sobre
a necessidade de não se calar sobre opressões como forma de manter uma suposta
unidade entre grupos oprimidos, ou seja, alertam para a importância de que ser
oprimido não pode ser utilizado como desculpa para legitimar a opressão.
A questão do silêncio também
pode ser estendida para um silêncio epistemológico e de prática política dentro
do movimento feminista. O silêncio em relação à realidade das mulheres negras
não a coloca como sujeitos políticos. Um silêncio que, por exemplo, faz com que
nos últimos 10 anos tenha diminuído o assassinato de mulheres brancas em quase
10% e aumentado em quase 55% o de mulheres negras, segundo o Mapa da Violência
de 2015.11 A falta de um olhar étnico-racial para
políticas de enfrentamento a violência contra a mulher. A combinação de
opressões coloca a mulher negra num lugar no qual somente a interseccionalidade
permite uma verdadeira prática que não negue identidades em detrimentos de
outras.
Por não serem nem brancas,
nem homens, as mulheres negras ocupam uma posição muito difícil na sociedade
supremacista branca. Nós representamos uma espécie de carência dupla, uma dupla
alteridade, já que somos a antítese de ambos, branquitude e
masculinidade. Nesse esquema, a mulher negra só pode ser o outro, e nunca
si mesma. (…) Mulheres brancas tem um oscilante status, enquanto si mesmas e
enquanto o “outro” do homem branco, pois são brancas, mas não homens; homens
negros exercem a função de oponentes dos homens brancos, por serem possíveis
competidores na conquista das mulheres brancas, pois são homens, mas não
brancos; mulheres negras, entretanto, não são nem brancas, nem homens, e
exercem a função de o “outro” do outro.
Nessa afirmação de Kilomba
percebemos que ela discorda da categorização feita por Simone de Beauvoir. Para a filósofa francesa, não há reciprocidade: a
mulher sempre é vista pelo olhar do homem num lugar de subordinação, como o
outro absoluto. Mas essa afirmação de Beauvoir diz respeito a um modo de ser
mulher – no caso, mulher branca. Kilomba, além de sofisticar a análise, inclui
a mulher negra em seu comparativo. Para ela, existe reciprocidade entre mulher
branca e homem branco e entre mulher branca e homem negro, existe um status
oscilante que pode permitir que a mulher branca se coloque como sujeito.
Mas Kilomba rejeita a fixidez
desse status. Mulheres brancas podem ser vistas como sujeitos em dados momentos,
assim como o homem negro. Beauvoir diz: “Ora, o que define de maneira singular
a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade
autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a
condição de Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto
sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência
essencial e soberana.”
Kilomba, além de mostrar que
mulheres possuem situações diferentes, rompe com a universalidade em relação
aos homens também mostrando que a realidade dos homens brancos não é a mesma da
dos homens negros, que também em relação a esses deve-se fazer a pergunta: de
quais homens estamos falando? Reconhecer o status de mulheres brancas e homens
negros como oscilante nos possibilita enxergar as especificidades e romper com
a invisibilidade da realidade das mulheres negras.
Para Kilomba, ser essa antítese
de branquitude e masculinidade impossibilita que a mulher negra seja vista como
sujeito. Para usar os termos de Beauvoir, seria a mulher negra, então, o outro
absoluto. Tanto o olhar de homens brancos quanto o de negros e quanto o das
mulheres brancas confinaria a mulher negra ao local de subalternidade muito
mais difícil de ser ultrapassado.
Numa sociedade de herança
escravocrata, patriarcal e classista, cada vez mais torna-se necessário o
aporte teórico e prático que o feminismo negro traz para pensarmos um novo
marco civilizatório.
Mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal
de São Paulo; graduada em Filosofia pela mesma universidade. Membro da Simone
de Beauvoir Society; Conferencista internacional. Colunista do site da Carta
Capital e do Blog da Boitempo. Secretária adjunta da Secretaria Municipal de
Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo.
0 comments:
Postar um comentário
Deixe seu comentário mais seu nome completo e localidade! Sua interação é muito importante!