por Rosana
Pinheiro-Machado (cientista social e antropóloga.
Professora do departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de
Oxford) via Carta
Capital
No Brasil e no mundo, o
capitalismo atua de forma muito mais inteligente do que no passado. Com isso, a
subjetividade política dá lugar ao niilismo
Após as eleições municipais, velhos clichês voltaram à
tona, como o que o povo brasileiro não sabe votar porque é ignorante e
manipulado. A coisa fica mais complexa quando vemos que essa fórmula, em tese,
não se aplicaria para o eleitorado do país mais rico do mundo que votou em Donald Trump, nem para a classe trabalhadora
britânica, que virou pró-Brexit.
Se não quisermos um Jair Bolsonaro para 2018, é fundamental que mudemos
radicalmente nossa postura, especialmente em relação às camadas populares. Tal
como no início do século XX, a onda conservadora é uma reação global às diversas
insurgências de massas por mudanças radicais que caracterizaram o século XXI.
O quadro piora quando pensamos
que as esquerdas e o campo progressista de um modo geral estão muito
mais fragmentados hoje, em comparação com a onda fascista do século passado. O
cenário do século XXI, portanto, não é uma cópia do século XX. Da China ao
Brasil, passando pelas potências do norte global, o neoliberalismo atual se
caracteriza justamente pelo esvaziamento da vontade política e democrática em
meio ao pleno desmonte da classe trabalhadora.
O capitalismo se transformou e
atua agora de forma muito mais molecular e inteligente do que no passado. O resultado
disso é que a subjetividade política é substituída pelo niilismo político e a
aversão à política institucional. Essa revolução subjetiva, em curso no mundo
todo, é o que precisamos entender, pois ela esvazia o senso de coletivo e o
aniquila a identidade de classe trabalhadora.
No lugar deixado no vazio do
coletivo e do abandono político, entram em cena, além do ódio e a rejeição
política, os valores sobre o mérito e a recompensa individual, a gestão, a
aspiração social, os prazeres do consumo e toda a racionalidade do indivíduo
empreendedor de si - o self
empreendedor, como alguns autores definem.
A racionalidade de mercado, as
igrejas com discurso empreendedor, entre outras esferas, ocupam espaço nesses
lastros deixados no vácuo democrático do neoliberalismo. Escutava na Inglaterra
um homem da região mais pobre do país apoiar fervorosamente o Brexit enquanto
gritava: “eu voto SIM porque eu odeio política”. Essa frase, aparentemente sem
sentido, é completamente lógica e sintomática.
Empobrecida, sem direitos,
enfrentando crises econômicas e entregue às traças, a classe trabalhadora está totalmente vulnerável aos
discursos totalitários, às respostas fáceis que culpem "os outros"
ou, simplesmente, avessa à política “do andar de cima”.
A classe trabalhadora,
globalmente, é quem paga a conta neoliberalismo. Ao mesmo tempo, muitas vezes,
é quem compra o seu discurso. Parece-me fundamental entender essa contradição,
ao invés de simplesmente encerrar a discussão inferindo a maior parte da
população do mundo é ignorante e não sabe votar.
Há os que votaram no Marcelo Crivella no Rio de Janeiro e há os que anularam. Há os que votaram na saída do Reino Unido da Europa e há quem nem tomou conhecimento do plebiscito. Há quem votou em Trump, mas também muitos não foram votar. Essa não é uma diferenciação sociológica trivial. Parece-me que, globalmente, existem dois fenômenos diferentes: os eleitores que estão sendo cooptados pela extrema direita e o discurso de ódio e os eleitores que estão completamente indiferentes (os que pensam que é “tudo a mesma m...”).
No Brasil, essa discussão precisa
ser colocada em contexto histórico, em que essa classe trabalhadora ao estilo
clássico “mineradores ingleses” praticamente nunca existiu. A economia informal
manteve-se em maior número do que a formal por muito tempo. A maior parte dos
trabalhadores já nasce trabalhando para si próprio, desregulado e sem direitos
sociais: são os camelôs, as diaristas e os “faz tudo”.
Meu ponto é unicamente alertar
que a racionalidade neoliberal no Brasil entra muito mais violenta, mais crua e
mais selvagem. É o desmonte de um coletivo que talvez nunca tenha existido num
sentido marxista mais clássico. Soma-se a isso, o abandono total do Estado nas
periferias, que só aparecendo na hora de bater, matar e chacinar.
As lutas ideológicas pelas
classes trabalhadoras no Brasil travadas pelo PT foram sendo abandonadas: o
orçamento participativo, caracterizado por organização e debate político
comunitário, por exemplo, dá lugar à distribuição de renda, que empodera, mas
também reforça um modelo de relação individual, apolítico e que vem junto com
políticas ferozes de financeirização das periferias.
Desistiu-se da política de base
nas periferias e deixaram-nas entregue às outras forças que conseguem preencher
o vácuo da esperança, do conforto e do sonho. A esquerda não é, por geração
espontânea e empatia natural, a porta-voz dos interesses dos mais pobres.
Admitir nossa cegueira e se reconectar com a classe trabalhadora e com as
periferias é o que precisamos para que não sejamos engolidos pela onda Trump.
A primeira vez que eu mencionei
que Bolsonaro era um fenômeno a ser observado, as pessoas riram. Hoje, quando o
presidente do país mais rico do mundo é eleito falando que não gosta de mulher
gorda e que vai construir um muro para barrar a imigração mexicana, eu acho que
poucos teriam firmeza para dizer que uma figura como Bolsonaro é apenas
ridícula - e não uma possibilidade real.
Para quem é cooptado pelo
discurso de extrema direita, é importante pensar sociologicamente de onde vem
tanta raiva. Sempre insisto que chamar o povo de coxinha e fascista não ajuda
em nada nessa batalha ideológica que nós perdemos – e perdemos feio.
Nós apenas afastamos essas
pessoas de nós – de nossa soberba e superioridade moral – e o jogamos ainda
mais para a direita, que, por sua vez as recebem de braços abertos, vendendo
sonhos e ódio. Nós também precisamos falar sobre votos nulos e sobre aqueles
que não veem diferença entre Crivella e Freixo, Lula e Bolsonaro, que sabem que
suas vidas podem continuar no total abandono da esfera pública, na fila do SUS
e na escola sem professores.
Os que entendem que lá para a
cima a farra é grande, os acordos são muitos e a vida segue do jeito que dá. No
fundo, há um entendimento de que “é tudo briga de branco”. Não estou falando em
lutar pelos votos nulos. Afinal, isso é o que a política tradicional fez a vida
toda. Estou falando em entendê-los. Escutá-los.
Falta-nos muita escuta, mas
sobram preconceitos de classe que se resumem a dizer que “pobre não sabe
votar”, que as pessoas são ignorantes e que funk, igreja e rolezinho são expressões da “baixa cultura”. Também
sobra muita teoria marxista de classe proletária para pouca classe operária no
Brasil. Sobra gente se rebatendo para enquadrar “o povo” como “proletários”,
“lumpem” e “precariado”.
A periferia não é manipulada,
tampouco vítima. São agentes de sua história e têm muito mais senso de
realidade sobre a discriminação de classe e de raça que sofrem do que muitos
acadêmicos podem imaginar. Falta entender como as classes populares se
organizam coletivamente por meio de redes de troca e solidariedade; sobram
modelos pré-fabricados da esquerda tradicional, do aparelhamento, da
distribuição de ficha de filiação de partido em pleno rolezinho.
Falta sair da universidade e das
redes sociais e conversar com as pessoas, não para doutriná-las, mas para uma
única vez na vida escutá-las. Falta entender que a micro política está pulsante
nas camadas populares – ela está na fé e no consumo – mas que ela não se cabe
nas caixinhas dos manuais de política revolucionária do século XIX.
Tem um mundo amplo e grande a ser
negociado e dialogado. É claro que é preciso que a esquerda volte a fazer
trabalho de base lá onde ônibus não chega, mas primeiramente é preciso ouvir os
próprios movimentos orgânicos da periferia, que talvez não queiram a luta de
classe, mas lutem pela a sua arte, sua vida, seu atendimento médico ou mesmo
por um poste de luz.
Todos aqueles que nunca
precisaram de um poste de luz, e sequer entendem o drama para negociar
eletricidade, precisam refletir que a própria luta da esquerda sobre a perda de
direitos pode ser pouco apelativa entre aqueles que se sentem destituídos de
direitos.
Não podemos perder o bonde da
história, nós temos que pegar carona nele.
Os tempos são sombrios, mas
também são promissores de novas formas de fazer política, mais horizontais,
democráticas e radicais. A luta de classe está lá no consumo popular, na
igreja, na vida cotidiana das pessoas que sofrem, mas também amam e se ajudam.
A luta de classes está pulsante e
vibrante, e ela emerge justamente nas brechas deixadas pelas contradições de um
mercado neoliberal excludente, classista e racista. A política está lá e ninguém melhor do
que a periferia para saber de seus interesses. Não é preciso politizar a
periferia. A esquerda é que precisa se periferizar.
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