Pages - Menu

Pages - Menu

19/11/2016

Chimamanda Adichie: o perigo de uma única história

Eu sou uma contadora de histórias e gostaria de contar a vocês algumas histórias pessoais sobre o que eu gosto de chamar “o perigo de uma única história.”

Eu cresci num campus universitário no leste da Nigéria. Minha mãe diz que eu comecei a ler com 2 anos, mas eu acho que 4 é provavelmente mais próximo da verdade.

Então, eu fui uma leitora precoce. E o que eu lia eram livros infantis britânicos e americanos. Eu fui também uma escritora precoce. E quando comecei a escrever, por volta dos 7 anos, histórias com ilustrações em giz de cera, que minha pobre mãe era obrigada a ler, eu escrevia exatamente os tipos de histórias que eu lia.

Todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis. Eles brincavam na neve. Comiam maças. E eles falavam muito sobre o tempo, em como era maravilhoso o sol ter aparecido. Agora, apesar do fato que eu morava na Nigéria. Eu nunca havia estado fora da Nigéria. Nós não tínhamos neve, nós comíamos mangas. E nós nunca falávamos sobre o tempo porque não era necessário.

Meus personagens também bebiam muita cerveja de gengibre porque as personagens dos livros britânicos que eu lia bebiam cerveja de gengibre. Não importava que eu não tinha a mínima ideia do que era cerveja de gengibre. E por muitos anos depois, eu desejei desesperadamente experimentar cerveja de gengibre. Mas isso é uma outra história.

A meu ver, o que isso demonstra é como nós somos impressionáveis e vulneráveis face a uma história, principalmente quando somos crianças. Porque tudo que eu havia lido eram livros nos quais as personagens eram estrangeiras, eu convenci-me de que os livros, por sua própria natureza, tinham que ter estrangeiros e tinham que ser sobre coisas com as quais eu não podia me identificar.

Bem, as coisas mudaram quando eu descobri os livros africanos. Não havia muitos disponíveis e eles não eram tão fáceis de encontrar quanto os livros estrangeiros, mas devido a escritores como Chinua Achebe e Camara Laye, eu passei por uma mudança mental em minha percepção da literatura.

Eu percebi que pessoas como eu, meninas com a pele da cor de chocolate, cujos cabelos crespos não poderiam formar rabo-de-cavalo, também podiam existir na literatura. Eu comecei a escrever sobre coisas que eu reconhecia. Bem, eu amava aqueles livros americanos e britânicos que eu lia. Eles mexiam com a minha imaginação, me abriam novos mundos.

Mas a consequência inesperada foi que eu não sabia que pessoas como eu podiam existir na literatura. Então, o que a descoberta dos escritores africanos fez por mim foi: salvou-me de ter uma única história sobre o que os livros são...

Eu venho de uma família nigeriana convencional, de classe média. Meu pai era professor. Minha mãe, administradora. Então nós tínhamos, como era normal, empregada doméstica, que frequentemente vinha das aldeias rurais próximas.

Então, quando eu fiz 8 anos, arranjamos um novo menino para a casa. A única coisa que minha mãe nos disse sobre ele foi que sua família era muito pobre. Minha mãe enviava inhames, arroz e nossas roupas usadas para sua família. E quando eu não comia tudo no jantar, minha mãe dizia: “Termine sua comida! Você não sabe que pessoas como a família de Fide não tem nada?” Então eu sentia uma enorme pena da família de Fide.

Então, um sábado, nós fomos visitar a sua aldeia e sua mãe nos mostrou um cesto com um padrão lindo, feito de ráfia seca por seu irmão. Eu fiquei atônita! Nunca havia pensado que alguém em sua família pudesse realmente criar alguma coisa. Tudo o que eu tinha ouvido sobre eles era como eram pobres, assim havia se tornado impossível pra mim vê-los como alguma coisa além de pobres. Sua pobreza era minha única história sobre eles.

Anos mais tarde, pensei nisso quando deixei a Nigéria para cursar universidade nos Estados Unidos. Eu tinha 19 anos. Minha colega de quarto americana ficou chocada comigo. Ela perguntou onde eu tinha aprendido a falar inglês tão bem e ficou confusa quando eu disse que, por acaso, a Nigéria tinha o inglês como sua língua oficial. Ela perguntou se podia ouvir o que ela chamou de minha “música tribal” e, consequentemente, ficou muito desapontada quando eu toquei minha fita da Mariah Carey.

Ela presumiu que eu não sabia como usar um fogão. O que me impressionou foi que: ela sentiu pena de mim antes mesmo de ter me visto. Sua posição padrão para comigo, como uma africana, era um tipo de arrogância bem intencionada, piedade.

Minha colega de quarto tinha uma única história sobre a África. Uma única história de catástrofe. Nessa única história não havia possibilidade de os africanos serem iguais a ela, de jeito nenhum. Nenhuma possibilidade de sentimentos mais complexos como humanos iguais.

Eu devo dizer que antes de ir para os Estados Unidos, eu não me identificava conscientemente, como uma africana. Mas nos EUA, sempre que o tema África surgia, as pessoas recorriam a mim. Não importava que eu não sabia nada sobre lugares como a Namíbia. Mas eu acabei por abraçar essa nova identidade. E, de muitas maneiras, agora eu penso em mim mesma como uma africana.

Entretanto, ainda fico irritada quando se referem à África como um país. O exemplo mais recente foi meu maravilhoso voo do Lagos 2 dias atrás, não fosse um anúncio da Virgin sobre o trabalho e caridade na “Índia, África e outros países.”

Então, após ter passado vários anos nos EUA como uma africana, eu comecei a entender a reação de minha colega de quarto para comigo. Se eu não tivesse crescido na Nigéria e se tudo que eu conhecesse sobre a África viesse das imagens populares, eu também pensaria que a África era um lugar de lindas paisagens, lindos animais e pessoas incompreensíveis, lutando guerras sem sentido, morrendo de pobreza e AIDS, incapazes de falar por eles mesmos, e esperando serem salvos por um estrangeiro branco gentil.

Eu veria os africanos do mesmo jeito que eu, quando criança, havia visto a família de Fide. Eu acho que essa única história da África vem da literatura ocidental. Então, aqui uma citação de um mercador londrino chamado John Locke, que navegou até o oeste da África em 1561 e manteve um fascinante relato de sua viagem. Após referir-se aos negros africanos como “bestas que não tem casas,” ele escreve: “Eles também são pessoas sem cabeças, que têm sua boca e olhos em seus seios.”

Eu rio toda vez que leio isso, e alguém deve admirar a imaginação de John Locke. Mas o que é importante sobre sua escrita é que ela representa o início de uma tradição de contar histórias africanas no Ocidente. Uma tradição da África subsaariana como um lugar negativo, de diferenças, de escuridão, de pessoas que, nas palavras do maravilhoso poeta, Rudyard Kipling, são “metade demônio, metade criança.”

E então eu comecei a perceber que minha colega de quarto americana deve ter, por toda sua vida, visto e ouvido diferentes versões de uma única história. Como um professor, que uma vez me disse que meu romance não era “autenticamente africano.”

Bem, eu estava completamente disposta a afirmar que havia uma série  de coisas erradas com o romance, que ele havia falhado em vários lugares. Mas eu nunca teria imaginado que ele havia falhado em alcançar alguma coisa chamada autenticidade africana. Na verdade, eu não sabia o que era “autenticidade africana.”

O professor me disse que minhas personagens se pareciam muito com ele, um homem educado de classe média. Minhas personagens dirigiam carros, elas não estavam famintas. Por isso elas não eram autenticamente africanas. Mas eu devo rapidamente acrescentar que eu também sou culpada na questão da única história.

Alguns anos atrás, eu visitei o México saindo dos EUA. O clima político nos EUA àquela época era tenso. E havia debates sobre imigração. E, como frequentemente acontece na América, imigração tornou-se sinônimo de mexicanos. Havia histórias infindáveis de mexicanos como pessoas que estavam espoliando o sistema de saúde, passando às escondidas pela fronteira, sendo presos na fronteira, esse tipo de coisa.

Eu me lembro de andar no meu primeiro dia por Guadalajara, vendo as pessoas indo trabalhar, enrolando tortilhas no supermercado, fumando, rindo. Eu me lembro que meu primeiro sentimento foi de surpresa. E então eu fiquei oprimida pela vergonha. Eu percebi que havia estado tão imersa na cobertura da mídia sobre os mexicanos que eles haviam se tornado uma coisa em minha mente: o imigrante abjeto. Eu tinha assimilado a única história sobre os mexicanos e eu não podia estar mais envergonhada de mim mesma.

Então, é assim que se cria uma única história: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão. É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. Há uma palavra da tribo Igbo, que eu sempre que penso sobre as estruturas de poder do mundo e a palavra é “nkali.” É um substantivo que livremente se traduz: “ser maior do que o outro.” Com nossos mundos econômicos e político, histórias também são definidas pelo princípio do “nkali.”

Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa. O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destruir uma pessoa, o jeito mais simples é contar sua história, e começar com “em segundo lugar.”

Comece uma história com as flechas dos nativos americanos, e não com a chegada dos britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece a história com o fracasso do estado africano e não com a criação colonial do estado africano e você tem uma história totalmente diferente.

Recentemente, eu palestrei numa universidade onde um estudante disse-me que era uma vergonha que homens nigerianos fossem agressores físicos como a personagem do pai no meu romance. Eu disse a ele que eu havia terminado de ler um romance chamado “Psicopata Americano” e que era uma grande pena que jovens americanos fossem assassinos em série. É óbvio que eu disse isso num leve ataque de irritação.

Nunca havia me ocorrido pensar que só porque eu havia lido um romance no qual a personagem era um assassino em série, que isso era, de alguma forma, representativo de todos os americanos. E agora, isso não é porque eu sou uma pessoa melhor do que aquele estudante, mas devido ao poder cultural e econômico da América, eu tinha muitas histórias sobre a América. Eu havia lido Tyler, Updike, Steinbeck e Gaitskill.

Eu não tinha uma única história sobre a América. Quando eu soube, alguns anos atrás, que escritores deveriam ter tido infâncias realmente infelizes para ter sucesso, eu comecei a pensar sobre como eu poderia inventar coisas horríveis que meus pais teriam feito comigo. Mas a verdade é que eu tive uma infância muito feliz, cheia de risos e amor, em uma família muito unida.

Mas também tive avós que morreram em campos de refugiados. Meu primo Polle morreu porque não teve assistência médica adequada. Um dos meus amigos mais próximos, Okoloma, morreu num acidente aéreo porque nossos caminhões de bombeiros não tinham água.

Eu cresci sob governos militares repressivos que desvalorizavam a educação, então, por vezes meus pais não recebiam salários. E então ainda criança, eu vi a geleia desaparecer do café-da-manhã, depois a margarina desapareceu, depois o pão tornou-se muito caro, depois o leite ficou racionado.

E acima de tudo, um tipo de medo político normalizado invadiu nossas vidas. Todas essas histórias fazem-me quem sou hoje. Mas insistir somente nessas histórias negativas é superficializar minha  experiência e negligenciar as muitas histórias que formaram-me.

A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história.

Claro, a África é um continente repleto de catástrofes. Há as enormes, como as terríveis violações no Congo. E há as depressivas, como o fato de 5.000 pessoas candidatarem-se a uma vaga de emprego na Nigéria. Mas há outras histórias que não são sobre catástrofes. E é muito importante, é igualmente importante, falar sobre elas.

Eu sempre achei que era impossível relacionar-me adequadamente com um lugar ou uma pessoa sem relacionar-me com todas as histórias daquele lugar ou pessoa.

A consequência de uma única história é essa: ela rouba das pessoas sua dignidade. Faz o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada difícil. Enfatiza como nós somos diferentes ao invés de como somos semelhantes.

E se antes de minha viagem ao México eu tivesse acompanhado os debates sobre a imigração de ambos os lados, dos Estados Unidos e do México?

E se minha mãe nos tivesse contado que a família de Fide era pobre. E trabalhadora? E se nós tivéssemos uma rede televisa africana que transmitisse diversas histórias africanas para todo o mundo?

O que o escritor nigeriano Chinua Achebe chama “um equilíbrio de histórias.” E se minha colega de quarto soubesse do meu editor nigeriano, Mukta Bakaray, um homem notável que deixou seu trabalho em um banco para seguir seu sonho e começar uma editora? Bem, a sabedoria popular era que nigerianos não gostam de literatura. Ele discordava. Ele sentiu que pessoas podiam ler, leriam se a literatura se tornasse acessível e disponível para eles.            

Logo após publicar meu primeiro romance eu fui a uma estação de TV em Lagos para uma entrevista. E uma mulher que trabalhava como mensageira veio a mim e disse: “Eu realmente gostei do seu romance, mas não gostei do final. Agora você tem que escrever uma sequência, e isso é o que vai acontecer...” E continuou a me dizer o que escrever na sequência.

Agora eu não estava apenas encantada, eu estava comovida. Ali estava uma mulher, parte das massas comuns de nigerianos, que não se supunham ser leitores. Ela não tinha só lido o livro, mas ela havia se apossado dele e sentia-se no direito de me dizer o que escrever na sequência.

Agora, e se minha colega de quarto soubesse de minha amiga Fumi Onda, uma mulher destemida que apresenta um show de TV em Lagos, e que está determinada a contar histórias que nós preferimos esquecer? E se minha colega de quarto soubesse sobre a cirurgia cardíaca que foi realizada no hospital de Lagos na semana passada?

E se minha colega de quarto soubesse sobre a música nigeriana contemporânea? Pessoas talentosas cantando em inglês e Pindgin, e Igbo e Yoruba e Ijo, misturando influências de Jay-Z a Fela, de Bob Marley a seus avós.

E se minha colega de quarto soubesse sobre a advogada que recentemente foi ao tribunal na Nigéria para desafiar uma lei ridícula que exigia que as mulheres tivessem o consentimento de seus maridos antes de renovarem seus passaportes?

E se minha colega de quarto soubesse sobre Nollywood, cheia de pessoas inovadoras fazendo filmes apesar de grandes questões técnicas? Filmes tão populares que são realmente os melhores exemplos de que nigerianos consomem o que produzem.

E se minha colega de quarto soubesse da minha maravilhosamente ambiciosa trançadora de cabelos, que acabou de começar seu próprio negócio de vendas de extensões de cabelos? Ou sobre milhões de outros nigerianos que começam negócios e às vezes fracassam, mas continuam a fomentar ambição?

Toda vez que estou em casa, sou confrontada com as fontes comuns de irritação da maioria dos nigerianos: nossa infraestrutura fracassada, nosso governo falho. Mas também pela incrível resistência do povo que prospera apesar do governo, ao invés de devido a ele.

Eu ensino em workshops de escrita em Lagos todo verão. E é extraordinário pra mim ver quantas pessoas se inscrevem, quantas pessoas estão ansiosas por escrever, por contar histórias.

Meu editor nigeriano e eu começamos uma ONG chamada Farafina Trust. E nós temos grandes sonhos de construir bibliotecas e recuperar bibliotecas que já existem e fornecer livros para escolas estaduais que não possuem nada em suas bibliotecas, e também organizar muitos e muitos workshops, de leitura e escrita para todas as pessoas que estão ansiosas para contar nossas muitas histórias.

Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias tem sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida.

A escritora americana Alice Walker escreveu isso sobre seus parentes do sul que haviam mudado para o norte. Ela os apresentou a um livro sobre a vida sulista que eles tinham deixado para trás. “Eles sentaram-se em volta, lendo o livro por si próprios, ouvindo-me ler o livro e um tipo de paraíso foi reconquistado.”

Eu gostaria de finalizar com esse pensamento: Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso. Obrigada!      
Chimamanda Ngozi Adichie
Escritora nigeriana, fez estudos de escrita criativa na Universidade Johns Hopkins de Baltimore, e mestrado de estudos africanos na Universidade Yale. Seu primeiro romance, Purple Hibiscus (Hibisco roxo (título no Brasil) ou A cor de hibisco (título em Portugal)), foi publicado em 2003. O segundo romance, Half of a Yellow Sun (Meio sol amarelo), foi assim chamado em homenagem à bandeira da Biafra, e trata de antes e durante a guerra de Biafra. Foi publicado pela editora Knopf/Anchor em 2006, e ganhou o Orange Prize para ficção em 2007.

* O texto - Chimamanda Adichie: o perigo de uma única história - foi digitado para esta postagem a partir da tradução do vídeo que segue:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário mais seu nome completo e localidade! Sua interação é muito importante!