A
Bioética é uma ética aplicada às Ciências da Vida. Talvez essa
seja a forma mais consensual de definir esse novo campo do
conhecimento.
Aparentemente
simples, e clara, em verdade a compreensão desse conceito depende,
primariamente, do que vem a ser ética e ética aplicada, e da
delimitação do universo de saber considerado como constituinte das
Ciências da Vida.
Considerando-se
a origem da palavra ética, constata-se que ethos, no grego,
assume tanto o significado social de costumes, como regras de conduta
de um determinado povo ou de um determinado período, quanto o
significado pessoal de caráter, representando o conjunto de
atributos psíquicos individuais que podem ser considerados como
vícios ou virtudes. Sua correspondente em latim é a palavra mores,
que significa modos, indicando, portanto, os comportamentos
tradicionais de uma determinada sociedade aceitos como corretos,
aproximando-se do primeiro sentido de ethos em grego. Por essa razão,
em alguns contextos, as palavras ética e moralsão tomadas como
sinônimas, e alguns autores chegam mesmo a considerá-las
invariavelmente como tal.
É
verdade que ambos os conceitos têm como semelhança primordial o
fato de serem inseparáveis da vida cultural e relacionarem-se com os
valores a partir dos quais são conduzidas as interações sociais e
discernimento do que é certo ou errado, em relação aos atos de uns
e de outros.
Dessa
forma, moral representa, aqui, o conjunto de valores vigentes através
dos quais as condutas se orientam e são julgadas, enquanto ética
consiste na atividade de investigação, interpretação,
questionamento e problematização dos valores, seja para
reafirmá-los como bons, seja para negá-los ou combatê-los,
propondo valores substitutivos. Assim, por exemplo, tomando-se a
questão da dependência de drogas (ou toxicomania), a moral seria o
conjunto de valores sob os quais a sociedade tradicionalmente tem
avaliado a relação dos humanos com substâncias psicoativas,
julgado o comportamento dos usuários de substâncias ilícitas e
produzido suas comunicações de massa e suas políticas de
repressão, prevenção ou tratamento, enquanto a ética seria o
questionamento e interpretação desses valores, e a investigação
dos interesses ou motivações que os sustentam, com vistas a uma
nova proposição de valores para abordar a questão.
O
Dicionário de Ética e Filosofia Moral considera a Bioética como o
ramo mais desenvolvido da ética aplicada. As Ciências da Vida, às
quais ela se direciona, são compreendidas como o conjunto formado
pelas Ciências da Natureza e da Saúde, especialmente quando suas
técnicas ou saberes trazem impactos para o equilíbrio do
ecossistema, conservação do ambiente, bem-estar de pessoas e
animais, e integridade das gerações futuras.
Em
que pese a diversidade de abordagens a bioética brasileira reconhece
a existência de consensos que podem ser resumidos em três eixos
principais: a proteção dos mais frágeis e o papel do Estado nessa
tarefa; a pluralidade moral aliada a uma Bioética laica, sem
pressupostos religiosos; e o respeito à dignidade da pessoa humana,
embasada nos direitos humanos, como limites inegociáveis para
práticas sociais.
Bioética
de proteção: tem como principal objetivo instrumentalizar e
proteger os sujeitos e populações em situação de exclusão dos
processos globalizantes, mais vulneráveis às ameaças à vida
diante de situações de risco e adoecimento, e incapazes de
enfrentar as adversidades em razão da pobreza e desamparo.
Reforçando essa ideia, alguns autores defendem que a Bioética de
Proteção, embora seja pensada em nível coletivo, não se restringe
às ações epidemiológicas preventivas; compreende, além disso,
medidas sanitárias pautadas na vulnerabilidade, suscetibilidade,
pobreza e necessidade, propondo ações que favoreçam a autonomia do
sujeito e a qualidade de vida.
Entendemos
por autonomia, a liberdade que o ser humano tem de manifestar sua
vontade em relação às questões de sua vida, seja no campo
biológico, físico, psíquico ou social. Para tanto, é necessário
estar livre de constrangimentos internos ou externos de relevância
que o impeçam de exercer suas escolhas. A pessoa ainda deve ter
capacidade para decidir de forma racional, optando entre alternativas
que lhe são apresentadas, e compreender as consequências de suas
deliberações.
A
Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, publicada
pela UNESCO em 2005, reafirma e recompõe uma perspectiva global, uma
vez que seus princípios consideram as questões sociais e sanitárias
como questões fundamentais, exigem distribuição justa de
benefícios do desenvolvimento tecnológico, atribuem às condições
socioeconômicas e à exclusão em saúde a geração de muitos
conflitos éticos nas Ciências da Vida, e reivindicam
responsabilidade social para com a diversidade cultural, a
preservação ambiental e o bem-estar das futuras gerações.
A
tendência de a Bioética brasileira associar-se às questões de
saúde pública não a tem levado, entretanto, a considerar as
diversas questões relacionadas com o uso/abuso de substâncias
psicoativas lícitas e ilícitas, sendo esse um dos temas,
lamentavelmente, negligenciado.
Pensar
bioeticamente as questões relacionadas com as substâncias
psicoativas no mundo contemporâneo não é pensá-la unicamente na
dimensão estreita das relações familiares, nem concebê-la como
causa direta de mal-estar social, mas antes pensá-la analiticamente
como consequência de contextos socioeconômicos e políticos. Da
mesma forma, a ausência ou inadequações de políticas e programas
adequados à prevenção, redução de danos ou tratamentos de
usuários devem ser investigadas como resultados também de uma
moralidade estigmatizante e imobilizadora que se infiltra advertida
ou inadvertidamente nas estruturas sociais.
Frequentemente,
atribui-se o consumo de psicoativos à desorganização familiar,
seja pela separação dos pais, seja pela violência intrafamiliar;
não raro, se atribui aos produtos ilícitos, mais comumente a
maconha, a cocaína ou o crack, a responsabilidade por inúmeras
situações danosas, tais como violência dos usuários na busca
pelas substâncias ou a luta entre traficantes para domínio de
territórios, conflito este regulado, exclusivamente, pela violência
e morte. Por outro lado, as intervenções públicas nesse campo são,
prioritariamente, representadas por ações policiais armadas, também
violentas, alimentando um ciclo interminável, na ausênia de diálogo
eficaz entre a segurança pública, a saúde, as instâncias públicas
responsáveis pelo desenvolvimento social e os segmentos sociais organizados,
a exemplo das associações de bairro, de pessoas vivendo nas ruas e
de usuários de substâncias psicoativas. O uso de produtos lícitos
e ilícitos, numa perspectiva populacional, coletiva, não deve ser
considerado causa de problemas e sim, muito mais, consequência da
insuportável desigualdade social, considerada nos níveis de
moradia, de saneamento, de educação, de saúde, de transporte,
entre outros, e suas repercussões sobre a geografia das
oportunidades, excluindo a maioria das pessoas, sobretudo nas regiões
menos desenvolvidas ou em desenvolvimento. Nesse sentido, a prevenção
do consumo, em particular do consumo disfuncional (abusivo, nocivo ou
prejudicial), não se fará através de intervenções
circunstanciais, mas através do desenvolvimento de políticas
públicas que atendam às necessidades das populações em suas
diversidades geográfica e cultural.
FONTE:
Curso
Prevenção dos Problemas Relacionados ao Uso de Drogas: Capacitação
para Conselheiros e Lideranças Comunitárias - 6ª edição,
promovido pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do
Ministério da Justiça (SENAD-MJ) e executado pelo Núcleo
Multiprojetos de Tecnologia Educacional da Universidade Federal de
Santa Catarina (NUTE-UFSC).
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