18/09/2014

USOS E USUÁRIOS DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS: CONSIDERAÇÕES BIOÉTICAS


A Bioética é uma ética aplicada às Ciências da Vida. Talvez essa seja a forma mais consensual de definir esse novo campo do conhecimento.
Aparentemente simples, e clara, em verdade a compreensão desse conceito depende, primariamente, do que vem a ser ética e ética aplicada, e da delimitação do universo de saber considerado como constituinte das Ciências da Vida.

Considerando-se a origem da palavra ética, constata-se que ethos, no grego, assume tanto o significado social de costumes, como regras de conduta de um determinado povo ou de um determinado período, quanto o significado pessoal de caráter, representando o conjunto de atributos psíquicos individuais que podem ser considerados como vícios ou virtudes. Sua correspondente em latim é a palavra mores, que significa modos, indicando, portanto, os comportamentos tradicionais de uma determinada sociedade aceitos como corretos, aproximando-se do primeiro sentido de ethos em grego. Por essa razão, em alguns contextos, as palavras ética e moralsão tomadas como sinônimas, e alguns autores chegam mesmo a considerá-las invariavelmente como tal.

É verdade que ambos os conceitos têm como semelhança primordial o fato de serem inseparáveis da vida cultural e relacionarem-se com os valores a partir dos quais são conduzidas as interações sociais e discernimento do que é certo ou errado, em relação aos atos de uns e de outros.

Dessa forma, moral representa, aqui, o conjunto de valores vigentes através dos quais as condutas se orientam e são julgadas, enquanto ética consiste na atividade de investigação, interpretação, questionamento e problematização dos valores, seja para reafirmá-los como bons, seja para negá-los ou combatê-los, propondo valores substitutivos. Assim, por exemplo, tomando-se a questão da dependência de drogas (ou toxicomania), a moral seria o conjunto de valores sob os quais a sociedade tradicionalmente tem avaliado a relação dos humanos com substâncias psicoativas, julgado o comportamento dos usuários de substâncias ilícitas e produzido suas comunicações de massa e suas políticas de repressão, prevenção ou tratamento, enquanto a ética seria o questionamento e interpretação desses valores, e a investigação dos interesses ou motivações que os sustentam, com vistas a uma nova proposição de valores para abordar a questão.

O Dicionário de Ética e Filosofia Moral considera a Bioética como o ramo mais desenvolvido da ética aplicada. As Ciências da Vida, às quais ela se direciona, são compreendidas como o conjunto formado pelas Ciências da Natureza e da Saúde, especialmente quando suas técnicas ou saberes trazem impactos para o equilíbrio do ecossistema, conservação do ambiente, bem-estar de pessoas e animais, e integridade das gerações futuras.

Em que pese a diversidade de abordagens a bioética brasileira reconhece a existência de consensos que podem ser resumidos em três eixos principais: a proteção dos mais frágeis e o papel do Estado nessa tarefa; a pluralidade moral aliada a uma Bioética laica, sem pressupostos religiosos; e o respeito à dignidade da pessoa humana, embasada nos direitos humanos, como limites inegociáveis para práticas sociais.

Bioética de proteção: tem como principal objetivo instrumentalizar e proteger os sujeitos e populações em situação de exclusão dos processos globalizantes, mais vulneráveis às ameaças à vida diante de situações de risco e adoecimento, e incapazes de enfrentar as adversidades em razão da pobreza e desamparo. Reforçando essa ideia, alguns autores defendem que a Bioética de Proteção, embora seja pensada em nível coletivo, não se restringe às ações epidemiológicas preventivas; compreende, além disso, medidas sanitárias pautadas na vulnerabilidade, suscetibilidade, pobreza e necessidade, propondo ações que favoreçam a autonomia do sujeito e a qualidade de vida.

Entendemos por autonomia, a liberdade que o ser humano tem de manifestar sua vontade em relação às questões de sua vida, seja no campo biológico, físico, psíquico ou social. Para tanto, é necessário estar livre de constrangimentos internos ou externos de relevância que o impeçam de exercer suas escolhas. A pessoa ainda deve ter capacidade para decidir de forma racional, optando entre alternativas que lhe são apresentadas, e compreender as consequências de suas deliberações.

A Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, publicada pela UNESCO em 2005, reafirma e recompõe uma perspectiva global, uma vez que seus princípios consideram as questões sociais e sanitárias como questões fundamentais, exigem distribuição justa de benefícios do desenvolvimento tecnológico, atribuem às condições socioeconômicas e à exclusão em saúde a geração de muitos conflitos éticos nas Ciências da Vida, e reivindicam responsabilidade social para com a diversidade cultural, a preservação ambiental e o bem-estar das futuras gerações.

A tendência de a Bioética brasileira associar-se às questões de saúde pública não a tem levado, entretanto, a considerar as diversas questões relacionadas com o uso/abuso de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas, sendo esse um dos temas, lamentavelmente, negligenciado.

Pensar bioeticamente as questões relacionadas com as substâncias psicoativas no mundo contemporâneo não é pensá-la unicamente na dimensão estreita das relações familiares, nem concebê-la como causa direta de mal-estar social, mas antes pensá-la analiticamente como consequência de contextos socioeconômicos e políticos. Da mesma forma, a ausência ou inadequações de políticas e programas adequados à prevenção, redução de danos ou tratamentos de usuários devem ser investigadas como resultados também de uma moralidade estigmatizante e imobilizadora que se infiltra advertida ou inadvertidamente nas estruturas sociais.

Frequentemente, atribui-se o consumo de psicoativos à desorganização familiar, seja pela separação dos pais, seja pela violência intrafamiliar; não raro, se atribui aos produtos ilícitos, mais comumente a maconha, a cocaína ou o crack, a responsabilidade por inúmeras situações danosas, tais como violência dos usuários na busca pelas substâncias ou a luta entre traficantes para domínio de territórios, conflito este regulado, exclusivamente, pela violência e morte. Por outro lado, as intervenções públicas nesse campo são, prioritariamente, representadas por ações policiais armadas, também violentas, alimentando um ciclo interminável, na ausênia de diálogo eficaz entre a segurança pública, a saúde, as instâncias públicas responsáveis pelo desenvolvimento social e os segmentos sociais organizados, a exemplo das associações de bairro, de pessoas vivendo nas ruas e de usuários de substâncias psicoativas. O uso de produtos lícitos e ilícitos, numa perspectiva populacional, coletiva, não deve ser considerado causa de problemas e sim, muito mais, consequência da insuportável desigualdade social, considerada nos níveis de moradia, de saneamento, de educação, de saúde, de transporte, entre outros, e suas repercussões sobre a geografia das oportunidades, excluindo a maioria das pessoas, sobretudo nas regiões menos desenvolvidas ou em desenvolvimento. Nesse sentido, a prevenção do consumo, em particular do consumo disfuncional (abusivo, nocivo ou prejudicial), não se fará através de intervenções circunstanciais, mas através do desenvolvimento de políticas públicas que atendam às necessidades das populações em suas diversidades geográfica e cultural.

FONTE:
Curso Prevenção dos Problemas Relacionados ao Uso de Drogas: Capacitação para Conselheiros e Lideranças Comunitárias - 6ª edição, promovido pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça (SENAD-MJ) e executado pelo Núcleo Multiprojetos de Tecnologia Educacional da Universidade Federal de Santa Catarina (NUTE-UFSC).

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